Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


sábado, 29 de outubro de 2011

Uma sequência de Di Cavalcanti

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Adélia Prado


Nenhum pecado desertou de mim.
Ainda assim eu devo estar nimbada,
porque um amor me expande.
Como quando na infância
eu contava até cinco para enxotar fantasmas,
beijo por cinco vezes minha mão.
Este é meu corpo, corpo que me foi dado
para Deus saciar sua natureza onívora.
Tomai e comei sem medo,
na fímbria do amor mais tosco
meu pobre corpo
é feito corpo de Deus.

PRADO, Adélia. A duração do dia. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2010. p.28.

Não conheço a poeta como ainda vou conhecer, mas quis reproduzir aqui um pouco do que me tocou particularmente.

Andei a ler poemas dela e também frases esparsas. Fiquei intrigada com esse específico poema, que tem uma ideia de amor honesta. Não há o medo de falar em Deus e em graça, não há o medo de assumir-se como criança desejante, não há vergonha do corpo nem teorias da conspiração! Não há purificação obrigatória, somos postos diante do imediato, do que se pede, vamos ao tosco porque ele faz bem.

É o corpo quem fala, fala através da imagem da mão e da boca que a beija. E é uma fala de mulher... Gosto da ideia de podermos ser toscas.

Sem arremate, mais Adélia: "As línguas são imperfeitas pra que os poemas existam..."
Que bom poder sair-se com um "enxotar fantasmas". De repente lembrei também de J.J.Veiga e seu impagável Aquele mundo de Vasabarros... Há situações que pedem isso mesmo, sem pôr nem tirar, enxotar como faz uma criança a um chato.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Percalços que fazem história no cinema

Vou logo remetendo para um endereço virtual com uma análise muito caprichada de um dos filmes que passo a relembrar.

Pareceu-me que o autor do comentário que assinalo, Ruy Gardnier, escolheu uma abordagem bastante boa, falando da maneira de filmar e da relação do filme com filmes posteriores, quer dizer, com aqueles que o utilizaram num detalhe ou num elemento importante:


A minha recapitulação é bem mais modesta, por força da minha formação, e tem que ver com o dia de hoje.

Depois de ouvir à hora do almoço uma notícia mais ou menos curta sobre troca de prisioneiros entre Israel e Palestina, lembrei de filmes bonitos a que já assisti e que provinham do Oriente.

Pensei em Onde fica a casa do meu amigo? (Khane-ye doust kodjast?, Abbas Kiarostami, 1987) e em A noiva síria (The Syrian Bride, Eran Riklis, 2004).  Um deles iraniano, o outro, produção conjunta de Israel, França e Alemanha. O iraniano recebeu prêmio no Festival de Locarno.

O 1º apela mais ao nosso sentido de proteção, às nossas idiossincrasias sobre o crescimento pessoal, pois na trama há um menino ainda pequeno que precisa resolver um mal entendido com o professor e com um colega, antes que seja recusada definitivamente a sua permanência na escola.

Para isso, ao som de um instrumento que é capaz de ser uma espécie de pandeiro (mil perdões aos que entendem de música, mas ainda não consigo dar a informação com precisão), vai a pé até outro povoado, com dificuldade e sem o conhecimento da mãe, que aliás conta com ele para tarefas domésticas que devem ser realizadas àquela mesma hora.

É sofrido, mas é suposto ser igualmente engraçado, eu acho...

Uma única turma muito reduzida, um professor severo, se considerarmos o caso de acordo com nossos parâmetros ocidentais, uma mãe exigente, um menino distraído e afinal responsável!

São aquelas passagens a que nos sujeitamos ou somos realmente obrigados, para aprender enquanto observamos os mais velhos. Descobrimos muitas coisas, comparamos, ganhamos uns traumas e com sorte alguma sensação de alívio. É a nossa bagagem para andar livremente, sejam quais forem os caminhos. É o nosso bilhete, nosso passaporte. São travessias, portas de entradas para mundos regidos por lógicas que até então desconhecemos.

Sem querer, aderimos ou a uma ou a outra lógica de funcionamento e pronto. Os anos que serão gastos a colocarmos em prática, aparando arestas às vezes, sem a menor introspeção, na maior parte dos casos.  

O menino se safa. O filme passa a ser um daqueles filmes queridos.

Eu, a quem as ideias sobre educação são em especial bem vindas, pois se trata da minha opção de vida, nada menos do que isso, não pude deixar de me agarrar à lembrança desse filme. 

E o 2º? A noiva síria.  

Tenho uma lembrança bem mais vaga, confesso. Pretendo ver de novo e, só daí, postar alguma impressão renovada.

Se saí do cinema, há 5 anos, com a sensação agradável de ter acabado de assistir a um filme recheado de temas pra fazer pensar e sentir, tenho a certeza de que alguma coisa de interessante se vai processar aqui dentro, de novo.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Heranças, "autorizações", humildade em língua portuguesa

Li histórias de Mia Couto logo que entrei no curso de Letras.
Comecei com Terra sonâmbula, que tenho como um livro marcante. A opção pelas cartas como modo de encadear o discurso do narrador, as constantes referências ao Oriente, a figura da criança, os demais dramas da guerra... Quantos elementos ali tomam o leitor de assalto! Depois, ele fica com uma impressão fortíssima do livro, não tem muito jeito de escapar...
Faz quase 15 anos desde então. Já li mais contos e romances desse autor, e é curioso como os enredos criaram uma empatia tremenda.
Enfim, em 1997, se não sou agora traída pela memória, Mia Couto esteve em São Paulo.
Simpático, foi à Universidade de São Paulo, mais especificamente à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, que os paulistanos pronunciam mais ou menos como "fefelete" ou "fefeleche" (por causa das iniciais FFLCH).
Numa aula de Literatura Africana ministrada pelo Prof. Doutor Benjamin Abdala Jr., ele sentou com os alunos nas carteiras velhas, respondeu às perguntas, apresentou-se numa voz baixinha etc.
Lembro-me de que já naquela altura era pacífico reconhecer nos textos de Mia Couto um dedinho do escritor Guimarães Rosa. Creio que ele próprio o fazia. Não me atrevo a afirmar que ele conversou sobre esse tópico conosco, mas asseguro que essa influência é qualquer coisa que se estuda enquanto se lê o moçambicano Mia Couto, para saborear melhor aquele trabalho todo com a construção das palavras.
Seja como for, estive hoje à procura de uma confirmação escrita desse parentesco que é a influência em literatura, para preparar este meu texto.
Encontrei fragmentos de uma entrevista que o escritor concedeu à jornalista Marilene Felinto há cerca de 9 anos.
Coincidências à parte, saliento que ela também estudou na FFLCH e, sempre polêmica, deu contribuições interessantes a temas que tocam especialmente a cultura negra. Estou a pensar num texto dela sobre Spike Lee, por exemplo, mas essa já é outra história!
A serviço do jornal Folha de S.Paulo, ela falou com Mia Couto e, entre outras perguntas, saiu-se com a seguinte:


E a influência de Guimarães Rosa?
Couto: Primeiro tenho que falar de Luandino Vieira, o escritor angolano, que é o primeiro contato que eu tenho com alguém que escreve um português que é arrevesado, que está misturado com a terra. E Luandino marcou-me muito. Foi o primeiro sinal da autorização de como eu queria fazer.

Eu sabia que eu queria fazer isso, mas eu precisava de uma credencial do mais velho que disse “esse caminho é abençoado”. E ele confessa que foi autorizado, também ele, por um outro, um tal João Guimarães Rosa que eu não conhecia, porque não chegavam aqui estes livros. Depois da Independência deixaram chegar livros do Brasil e é uma coisa irônica, do ponto de vista histórico.

Houve mais cruzamentos e trocas de livros no tempo colonial e fascista do que depois da Independência. Então, eu tinha este fascínio. Eu tinha que conhecer este João, este tal Rosa. E um amigo meu trouxe as “Terceiras Histórias”. E de fato foi uma paixão. Foi de novo alguém que dizia “isto pode-se fazer literariamente”. Mas, como tu dizes, eu já queria fazer isto, porque já estava contaminado primeiro por este processo que não é literário, é um processo social das pessoas que vêm de outra cultura, pegam o português, renovam aquilo, tornam a coisa plástica e fazem do português o que querem.

É um processo muito livre aqui. As pessoas misturam português e como dizia uma camponesa da Zambézia, “eu falo português corta-mato”...

A filiação está explícita, certo? Mia Couto não nega que tenha sido encantado, por assim dizer, pelas palavras e pela liberdade de Guimarães Rosa.
Um brasileiro que goste de livros bem feitos sente essa atração. Chamo atenção para esse recorte, "um brasileiro", porque traduzir a obra de G. Rosa é tarefa árdua, portanto ela está menos acessível a quem não sabe o português.
Ler o conto "A terceira margem do rio", por exemplo, produz uma tal ligação do leitor com a ideia de família, de destino, de dedicação, de amor incondicional e com muitas outras frentes, que é possível terminar a leitura aturdido.
Para que se tenha uma noção do fascínio, o padre que muito gentilmente fez a cerimônia do batismo do meu filho em São Paulo, antigo professor de outra universidade pública brasileira, a UNESP, mencionou esse conto, para aludir àquele sentido que a tantas vidas escapa, como a todo rio falta (mas há!) uma terceira margem... O amor, segundo o Pe. José de Almeida Prado, é a terceira margem: está lá, muito embora seja preciso transcender para saber-lhe a importância, a indispensabilidade.
Pois muito bem. Guimarães Rosa é penetrante, Mia Couto também o é.
São os temas, é a sensibilidade, é o ouvido atento que um teve e o outro ainda tem para o povo no esplendor da sua sabedoria. E é o reconhecimento da riqueza da oralidade.
Se, no entanto, fazemos uma ponte enorme e atravessamos de continente para continente, parando na agradável cidade portuguesa chamada Penafiel, o que se projeta na rua relativamente a Mia Couto?
Funciona lá um projeto cujo nome é "Escritaria". Quem responde por ele? Tanto quanto pude averiguar, é um grupo de arquitetos.
É bem provável que os jornais que ouvi e os que li tenham dado a notícia da mais recente edição desse projeto sem confiar aos leitores e aos ouvintes muitos pormenores.
Shame on you!
Então quem é responsável pela pesquisa ou pela investigação do conteúdo literário em Mia Couto? É importante saber.
Quem tem verdadeiramente autoridade, no sentido acadêmico, se quiserem, para falar do lado profissional Mia Couto? Ele é biólogo, podia ter chegado a médico se fosse em frente com o curso universitário and so on.
A televisão aberta em Portugal noticiou o evento de dois dias (mas parece que vai além disso, conforme apurei) como a vitrine ou o palco para o ineditismo de Mia Couto. Como se ele tivesse utilizado uma técnica inédita. Como se ele não se vinculasse a outras culturas, orais e letradas.
O processo tem nome, é neologismo, e antecede o escritor de que tratamos. É um recurso.
Fiquei incomodada com a diminuição.
Ótimo ter pessoas as mais variadas a ler na rua um texto sonoro e bem conseguido. Excelente dar espaço a um africano filho de portugueses, homem aberto, homem culto.
Mas o que vai em uma instalação, em uma estrutura grande, vistosa, em uma inscrição mais simples na rua etc não pode começar pelo zelo com a mensagem, com o conteúdo?
Expor faz todo o sentido se aquilo que se deseja expor tem contexto, tem a preservação do seu engenho, da sua especificidade.
Mia Couto é singular porque preservou e ao preservado acrescentou a sua magia.
Não basta hoje oferecer ao público uma face desse trabalho, dissociada do todo, do passado, dos cruzamentos.
Fica ou não fica mais interessante observar um certo lado da criação de Picasso, depois que sabemos do interesse dele pelas máscaras africanas?!
Aprendi esse pormenor num curso dado a professores de S.Paulo encarregados de passear com seus alunos por uma grande exposição de arte.
Sinto-me enriquecida e respeitada por até mim ter chegado o pormenor - que espero fique claro não é meramente pormenor, na minha perspectiva.
Mia Couto não deixa de ser formidável se não recuarem até Guimarães Rosa, mas o cidadão já tão empobrecido dos nossos dias merece o pormenor, não merece?

Aos que estiverem interessados em saber como o blog do projeto "Escritaria" insere os potenciais visitantes do evento na dimensão criativa e linguística do trabalho de Mia Couto que estive a criticar, reproduzo aqui um trecho do texto de apresentação, extraído hoje, dia 17 de Outubro de 2011:

"Novidade é também o palavrário, um dispositivo colocado no espaço público que irá permitir aos visitantes exercer a criatividade lexical à maneira de Mia Couto. Trata-se de um dispositivo constituído por um conjunto de caracteres móveis e por um espaço de composição, onde o transeuntes podem encontrar exemplos de invenções lexicais retiradas da obra do escritor e onde serão convidados a construir novas palavras."

quinta-feira, 13 de outubro de 2011



Bolo de damasco.


Era isso mesmo que ofereciam na festa do meu amigo, a cada mês de Dezembro, para cantarmos os "Parabéns".


Havia outros doces e outros salgados, ok. Também fiquei com a lembrança dos queijos e dos brigadeiros. Só que fixei mais o bolo, que deixava um gosto diferente no fim da mordida. Doce o suficiente. Aquilo que não excede nem falta.


Sobretudo, para além do que se servia, havia um clima de ritual. Ao mesmo tempo tinha que ver com o estar a comemorar mais um ano vivido e o estar simplesmente a reunir pessoas em torno da mesa, serenamente.


Foi assim que não perdemos o contato, passada a época da escola; um recém-saído de um casamento e outro, prestes a começar num emprego empolgante, encontravam-se e punham a conversa em dia.


Como em muitos outros lugares, houve vezes em que estive como quem espreita, sem entrar. Queria bem àquele pessoal todo, sem dúvida, mas nunca os abracei, por exemplo. Hoje sinto alguma pena por isso. Fui vizinha do dono da festa por 4 anos, fui paquera de um, confidente de outro e... fui tímida demais, bolas!


Ontem, ao conversar com alguém do grupo, quieto igualmente, porém menos emocional do que eu, bateu uma saudade boa boa boa. Se eu soubesse fazer bolo de damasco, cozinhava um com todo o carinho!

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Grávida de tudo



Quem já assistiu ao filme Denise está chamando (Denise calls up, Hal Salwen, 1995)?

Hoje senti saudade de ver uma protagonista naive que não é mostrada ou como boba ou como exótica, mas como a diferença que inaugura qualquer coisa de proveito.

Passa-se dessa maneira mesmo, eu acho; quer dizer, as pessoas no princípio têm uma dose saudável de ingenuidade, que permite irem em frente em projetos "pouco recomendáveis".

No caso dela, Denise, melhor ainda. Ela simplesmente não se importa em exercer o papel que exerce no grupo. Ela é de longe a única que dá sentido ao grupo. Um pequeno grupo nasce da ação dela. E Denise usa uns vestidos engraçados, que dão charme, é histriônica e o principal é que contraria a onda de modernidade das pessoas pertencentes à mesma faixa etária em que está. Não passa horas ao telefone e ao computador, para depois esconder-se, com medo de encarar a rua e, nela, quem estava do outro lado do fio do telefone.

O medo ou enlouquece ou paralisa. Eu admiro a Denise e gostava de sentir medo menos vezes.

PS - havia esquecido de dizer que o filme tem Muddy Watters na trilha sonora.


Um objeto de consumo. Meio piroso o de cima, mas com estilo.

Punha num canto, ao contrário desse da foto, que alguém achou bonito no meio da sala.

Será que dormia melhor? Será que voltava a ter gosto por dormir na sala?

Depois do Átila, estar no sofá da sala naquele embalo dorme-não-dorme é recurso e não escolha.




PS - Bobagem, enfim: sofá com pé de metal? Madeira, pra mim, dá também o ar de estabilidade que fica bem num objeto em que a gente vai sentar.

"Eu não sei dançar tão devagar, pra te acompanhar"



O que a Marina Lima quer (ou queria) com essa música???




Com essa letra de música?




Claro que Não sei dançar tem outros versos, imagens até interessantes ("e tudo que eu posso te dar é solidão com vista pro mar", grifo meu), mas no geral termino de ouvir - conheço a música há tempos -, e me parece apenas... lamento.




Vai ver é isso, todo o mundo se lamenta de vez em quando, pra ver se convence um ombro amigo, se ganha um admirador. Mariana Alcoforado lamentou-se nas cartas ao francês! E eu as estudei...




De qualquer modo, gosto do que está no finalzinho da canção: "se você quiser, eu posso tentar".




E quem era mesmo que cantava alguma coisa parecida, algo como "eu não te completo, você não me basta, mas é lindo o gesto de se oferecer"?




São os Paralamas do Sucesso, de novo!




Gosto muito dos Paralamas. Tive um post que terminava com dois versos deles, mas a falta de habilidade me fez apagar o conteúdo. Caramba.




Pra encerrar sem concluir, aqui vão eles, os versos, mais uma vez, pra lembrar Herbert, Bi e Barone:




"Novas maravilhas pra se admirar

Não me venha com a velha dor".