Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Adélia Prado


Nenhum pecado desertou de mim.
Ainda assim eu devo estar nimbada,
porque um amor me expande.
Como quando na infância
eu contava até cinco para enxotar fantasmas,
beijo por cinco vezes minha mão.
Este é meu corpo, corpo que me foi dado
para Deus saciar sua natureza onívora.
Tomai e comei sem medo,
na fímbria do amor mais tosco
meu pobre corpo
é feito corpo de Deus.

PRADO, Adélia. A duração do dia. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2010. p.28.

Não conheço a poeta como ainda vou conhecer, mas quis reproduzir aqui um pouco do que me tocou particularmente.

Andei a ler poemas dela e também frases esparsas. Fiquei intrigada com esse específico poema, que tem uma ideia de amor honesta. Não há o medo de falar em Deus e em graça, não há o medo de assumir-se como criança desejante, não há vergonha do corpo nem teorias da conspiração! Não há purificação obrigatória, somos postos diante do imediato, do que se pede, vamos ao tosco porque ele faz bem.

É o corpo quem fala, fala através da imagem da mão e da boca que a beija. E é uma fala de mulher... Gosto da ideia de podermos ser toscas.

Sem arremate, mais Adélia: "As línguas são imperfeitas pra que os poemas existam..."
Que bom poder sair-se com um "enxotar fantasmas". De repente lembrei também de J.J.Veiga e seu impagável Aquele mundo de Vasabarros... Há situações que pedem isso mesmo, sem pôr nem tirar, enxotar como faz uma criança a um chato.