Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


terça-feira, 8 de novembro de 2011

Não é incoerência, é só uma ideia

Houve um post que terminei com a ideia de que, às mulheres, fica bem serem toscas. Acrescento que fica bem às mulheres serem toscas, charmosas, prendadas, depende do contexto.
Trato já de me defender, porque hoje a palavra "tosco" anda em muitas bocas. Recorro ao Caldas Aulete, na versão disponível no UOL:

(tos.co) [ô]

1. Que não é lapidado, polido, nem lavrado; tal como a natureza o produziu; BRUTO: "Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, dura, tosca, bruta, informe." (Padre António Vieira)  
2. Feito sem capricho (móveis toscos); MAL-ACABADO
3. Que revela falta de instrução, de cultura: "Ele teria tido certas dúvidas de se abrir com um homem tão tosco..." (Antônio Callado, Bar Don Juan))
4. Feito sem esmero; GROSSEIRO; MALFEITO: escada cavada em toscos degraus.
5. Rude, rústico, grosseiro (linguajar tosco): "Uma tumba negra jazia ao lado e uma cruz tosca no chão cravada" (Almeida Garrett)
[F.: Do lat. vulg. tuscus, 'dissoluto'.]

A minha aspiração é qualquer coisa como dispor mais vezes da liberdade de não caprichar, de dar menos polimento às falas e aos gestos, para economizar energia.
Ou, por outro ângulo, quero dizer que a mim ficava bem dar menos polimento, para esperar menos dos outros também. Estarei “a perder qualidades”, como dizem os portugueses?
Não sou irrepreensível, longe disso, e ninguém o é, então por qual motivo insistir na amabilidade a todo custo, a toda hora? Se calhar, esse excesso abre caminho para pessoas que não pediram para entrar… E com certeza obriga a um gasto de energia.
E certas horas eu quero desligar o botão, para poupar energia.
Parece que pouca polidez, isto é, pouca atenção aos modos, à comunicação, ao bom senso, reina e não se trata de agir com maldade! Deve ser falta de treino da maioria das pessoas. Pode ser economia de energia.
Recentrando a questão, quem dera eu fosse mais tosca, porque ser amável e despojada ao mesmo tempo ainda está acima das minhas possibilidades. É uma das minhas aspirações, mas por ora eu não alcanço!
Fosse eu mais tosca, no sentido de mais relaxada, e estavam postos de parte muitos mal entendidos… como igualmente estavam garantidas algumas cenas divertidas.
Nosso lado impuro, mal acabado, tem sua graça natural! É tal e qual a risada que a leitura da primeira estrofe desse poema do Leminski provoca:

“Conheço esta cidade
como a palma da minha pica.
Sei onde o palácio
sei onde a fonte fica,

Só não sei da saudade
a fina flor que fabrica.
Ser, eu sei. Quem sabe,
esta cidade me significa.”

Se eu fosse aqui e ali mais tosca, eu ria mais, os outros riam mais. Éramos nós mesmos, de cabeça e coração livres para darmos a faceta bem-educada quando estivéssemos em curva ascendente. Vindo a descendente, mudávamos o registro para o modo tosco, sem culpas…

Não faz muitos anos aprendi algo semelhante a essa ideia que eu encontrei em Leminski, que eu referi no outro post por causa de Adélia Prado e que eu mesma sinto, quando a minha insistência em dizer “obrigada”, “por favor” e afins soa como um exagero meu, já assumido neste texto. Uma velha amiga, psicóloga de profissão, me dizia que nem sempre vale a pena ser "boa moça". Dar constantes sinais de boa educação, cuidar que nos tomem invariavelmente por calmas, doces e flexíveis não nos torna mais respeitadas. Podiam me chamar “fresca”, como se diz em São Paulo, eu aceitava; eu aceito, desde há algum tempo, que me chamem “tosca”.

Faz alguns dias estive na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O anfiteatro nobre estava cheio, cadeiras ocupadas por uma plateia disposta a ouvir e ver mulheres inteligentes e divertidas. Não fazíamos a menor ideia acerca das habilidades delas para os afazeres domésticos, não tínhamos conhecimento da disponibilidade para agirem como boas moças, educadas e passivas.
Estava prevista a presença de Maria Teresa Horta, autora do livro em lançamento; de Ana Luísa Amaral, uma das professoras encarregadas de comentar o livro; de Maria Luísa Malato, a outra professora encarregada de apresentar o livro à plateia.  
Maria Teresa Horta, a autora, é fantástica.
Não vou desviar dos adjetivos, neste caso. Nem sei se os evito normalmente. Hoje sem dúvida não quero evitar.
Ela se empolga ao falar de mulheres cuja biografia estudou anos a fio; empolga-se ao falar das amigas, uma delas presente, a sua editora na Dom Quixote; empolga-se ao falar de livros; empolga-se se alguém assinala a importância que ela tem na assunção da sexualidade das mulheres mais velhas; empolga-se quando a plateia ri e acompanha o raciocínio delas. Empolga-se. E recomenda que outras mulheres excedam, ousem abrir os olhos para o que pode ser a intimidade de uma mulher, leiam e façam-se perguntas sobre o que mulheres de outras épocas viveram.
Li Novas cartas portuguesas, livro cuja autoria ela divide com mais duas mulheres (Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno), várias vezes desde o meu 1º ano de faculdade.  
Vou ler As luzes de Leonor, sobre Leonor de Almeida, a Marquesa de Alorna, para saborear a vida de mulheres que até em praça pública estiveram, à espera da condenação. Segundo Maria Teresa Horta, no momento crucial da execução, a avó de Leonor, a Marquesa de Távora, não agiu como quem faz concessões, não deu aos outros o gosto de vê-la, perturbada e temerosa, a consentir sem mais; respondeu ao carrasco com firmeza e precisão. Para dispor da nossa energia é necessária por vezes uma dose de manipulação.