Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quinta-feira, 10 de novembro de 2011

- Clarice!

"Francisco Quinteiro Pires

Literatura

09.11.2011 12:21

Para inglês entender

Edições de A Hora da Estrela, vertida por Moser para a New Directions, buscam recuperar o tom literário da escritora, perdido em traduções anteriores. 




Foto: Luiz Maximiano

A escritora Clarice Lispector (1920-1977) ganhou uma segunda chance no mundo que fala inglês. Cinco dos seus livros, Perto do Coração Selvagem, A Paixão Segundo G.H., Água Viva, A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida, vão receber novas traduções. Coordenador do projeto, Benjamin Moser vê na empreitada a oportunidade de Clarice ser mais conhecida nos Estados Unidos e no Reino Unido. Segundo Moser, dada a má qualidade das versões em inglês, quem lê a autora brasileira corre o risco de não entendê-la. “O erro das antigas traduções foi querer tornar o seu estilo mais legível”, diz.
Autor de Clarice, uma Biografia (Cosac Naify), Moser considera praticamente impossível traduzir os livros da ficcionista. “O dela não é um português normal, ele é agressivamente estranho.” Moser assina a nova tradução de A Hora da Estrela (1977), a ser publicada em novembro pela New Directions (EUA) e pela Penguin Classics (Reino Unido). Alison Entrekin vai traduzir Perto do Coração Selvagem (1944); Idra Novey, A Paixão Segundo G.H. (1964); Stefan Tobler, Água Viva (1973); e -Johnny -Lorenz, Um Sopro de Vida (1978)."

Tudo o que você acabou de ler, e que está entre aspas, eu li na tela/ecrã do meu computador há minutos, acessando o site da revista Carta Capital.

E li com ressalvas.

Conheço bem os contos de Clarice Lispector. As histórias infantis, idem. Os romances, ia conhecendo conforme era preciso tratar deles com meus antigos alunos. Não os estudei à exaustão, confesso.

Estudo desde aproximadamente ano e meio, novamente, Clarice Lispector, inclusive o lado missivista de Clarice. Ela é autora de cartas muito afáveis, dirigidas às irmãs e aos amigos, por exemplo.

Em minha pesquisa, tento dar uma forma a esse cruzamento entre ficção e não-ficção, considerando todas as implicações que o gênero carta tem. Sem falar no fato de ela ter produzido boa parte do que eu estudo enquanto vivia no exterior a experiência de ser estrangeira - até para ela própria, em certa medida.

Para isso conto com uma fortuna crítica que já tem seu peso. Ressalto que existem no mercado livros excelentes de pesquisadores brasileiros, livros da Universidade de São Paulo, livros oriundos de anos de pesquisa em outras instituições do Brasil.

Há dois anos estive na Casa de Cultura Japonesa da USP, para acompanhar um lançamento importante.
Era Nádia Battella Gotlib a dar a conhecer uma nova edição da fotobiografia de Clarice Lispector.

Comprei, li, emprestei, recebi de volta e tornei a folhear.

E, já aqui em Portugal, dei-me conta do rebuliço em torno do lançamento da biografia escrita pelo pesquisador inglês referido no texto da Carta Capital. A coisa soou meio esquisita para mim.

Jogaram confete a mais, a meu ver...

Cheguei a escrever para uma revista portuguesa que divulgou o lançamento, questionando a ênfase com que apresentavam ao público o trabalho dele, num período tão próximo do relançamento da fotobiografia anterior. Eu, pelo menos, não havia notado semelhante alarido por causa do trabalho feito pela antiga professora da USP, Nádia Battella Gotlib.

Não li resposta da revista para o meu argumento.

E agora, numa revista brasileira, mais confete.

Que acham do texto? Que pensam do tom usado?

Vou investigar: Clarice ganha uma 2ª chance perante o público que lê em língua inglesa? Bom, prefiro saber quem traduzia a obra dela até então!

Isso de condenar traduções é delicado. Quem quer criticar tem que saber ao pormenor o texto original, depois tem que saber apontar os problemas pontuais da tradução, e tem que explicar o que louva numa tradução nova. Nessa seara não basta vir com uma noção vaga, uma impressão ou coisa que o valha.

Clarice Lispector já é, de algum modo, conhecida nos Estados Unidos... Tem críticos nesse país. É estudada nesse país. Moser desejará, portanto, que ela seja lida pelo grande público? Será? Só isto rendia uma reportagem inteira da Carta Capital. Assim traçavam para os brasileiros, para os lusófonos, para os amantes de literatura, para os conhecedores de Clarice (e muitos jovens no Brasil o são, por causa do Ensino Médio), enfim, um panorama de leitura de autores lusófonos nos Estados Unidos. E muitas questões adjacentes vinham em seguida. E o hábito de criticar tradutores - os brasileiros são mencionados sem o menor cuidado, em Portugal - era passado em revista. E tal e tal e tal.

Se o próprio Moser vai traduzir, começa a cheirar a reserva de mercado no âmbito das Letras... Achei que apenas os professores universitários mais acostumados faziam dessas!

Por fim, o que depreender daqui: "Moser considera praticamente impossível traduzir os livros da ficcionista. 'O dela não é um português normal, ele é agressivamente estranho.'"?

Clarice pode ser agressiva, estou com um conto em mãos particularmente engraçado nesse sentido. E olha que eu estive às voltas, na minha cabeça, com aquela ideia de ser tosca. A protagonista do conto se refugia um pouco nessa condição, quando o mundo exterior a sufoca de monotonia. Mas o português de Clarice será agressivo? O que isso quer dizer? Traduza, por favor, em termos de verbos, de substantivos, de adjetivos, de montagem do discurso direto, de metáforas, de pontuação, de silenciosas omissões de palavras, de idioleto...

Terminar um texto informativo com esses rasgos de mistério não me seduz, nem como leitora nem como pesquisadora. Aliás, nem o lugar comum ligeiramente alterado, do título "Para inglês entender", tem a minha simpatia. Sugere um questionamento que o texto frustra. Ajoelhou, tem que rezar, senhor jornalista!