Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A televisão, os concursos, os erros da produção e... a generosidade da entrega




O link é muito extenso, mas está correto, corresponde ao que eu pretendo comentar, sim. Hoje mesmo assisti ao vídeo a que ele remete e que, pelo menos no meu computador, andava sempre aos trancos, com interrupções durante a transmissão.

Esse vídeo chamou minha atenção porque o destaque que ele recebeu no UOL trazia a promessa de mostrar problemas de pronúncia e de ortografia do programa de televisão "Caldeirão do Huck". Foi isso o que eu quis verificar com calma.

Muitos brasileiros conhecem o programa, porque faz anos ele está na grade de uma emissora bem qualificada em termos de imagem, de som, de edição. A qualidade nem sempre se confirma, no entanto, se está em discussão o conteúdo dos programas da emissora. A TV Globo tem boas e más produções, em termos de conteúdo. 

Pensando de maneira positiva, já considero razoável que isso aconteça, não me assusta que a TV Globo tenha padrões elevados no que diz respeito a umas coisas e baixe o padrão no que diz respeito a outras. Pois lembro que outras emissoras primam por programas muito ruins: algumas emissoras de televisão brasileiras têm mau jornalismo, sensacionalismo com direito a plateia no auditório da gravação, ensinam receitas culinárias lidas e comentadas por apresentadoras de péssima dicção etc. Quem acompanha a programação do período da tarde, sabe do que eu falo.

Tenho a certeza de que muito adolescente (e muito adulto também) discordará do caso que escolhi expor a seguir, porém o fato é que não consigo achar graça num programa como o "Pânico", por exemplo. Sinceramente, espero que o dia em que vou achar graça nesse programa nunca chegue! A produção do "Pânico" escolhe personalidades brasileiras das quais o telespectador deve debochar depois que ela debocha, proporciona perseguições de mau gosto a atores, a apresentadores e a outras figuras públicas, sem contar que essas práticas rebaixam seus próprios profissionais. Se estes se consideram uns sortudos por estarem naquele ambiente, e eu desconfio que sim, consideram-se, é pena. Eu não creio que aprendam a partir do trabalho que realizam, não creio que ensinem, não creio que o senso de humor, e neste ponto estou falando do objeto de trabalho deles, saia enriquecido ao final de um, de dois, de dez programas que vão ao ar. Até hoje não perdi muito tempo com o "Pânico"; para rir, dou preferência a quem me surpreenda e a quem faz paródia sem destruir o elemento parodiado, inclusive no registro pastelão, que eu adoro.  

Bom, ia começar a falar do "Caldeirão", entretanto. Perdi-me, com a intenção de demonstrar que podemos colocar os programas numa escala medidora do conteúdo. A avaliação que eu faço não dá uma nota assim tão baixa ao "Caldeirão" quanto dá a outros programas, e o "Pânico" faz a minha medição ir quase ao zero da escala!  

Não sendo um programa super interessante em termos de conteúdo como o é em termos de imagem e de som, o "Caldeirão" peca, no entanto, quando dá informações erradas.

Tem muita gente com a televisão ligada para assistir ao programa, não pode haver descuido com o uso da língua portuguesa. É disso que o vídeo apresentado por Maurício Stycer trata. 

Stycer usou seu espaço no portal UOL para mostrar o caso em que aparecia no ecrã/tela da televisão a palavra "acento", para designar o banco dos autocarros/ônibus. Essa gafe, conforme ele esclareceu, foi corrigida, ok. Não foi corrigida ao vivo, só no site do "Caldeirão". Soube da versão certa da palavra (que também existe com a grafia "acento", mas quer dizer outra coisa, serve para indicar aqueles sinais que sobrepomos às letras, para marcar o ponto em que a palavra tem pronúncia mais forte, tônica) apenas quem acessou o  site

Personagem do filme "Bee Season", de 2005


Houve também uma situação a meu ver mais curiosa, porque a participante do programa, uma adolescente, percebeu a incoerência que o apresentador Luciano Huck dava como certa e reclamou prontamente. O contexto era uma competição de Spelling Bee, mais comum nos Estados Unidos e na Inglaterra. Sem defender que passatempos e/ou preocupações que destoam da realidade brasileira tomem conta dos adolescentes brasileiros, penso que essas competições em que os participantes se esforçam para soletrar corretamente são engraçadas, pelo menos fazem uma pessoa se sentir bem por causa de um conhecimento adquirido.

É polêmica a obrigatoriedade de componentes educativos nos programas televisivos. Stycer se disse desfavorável a ela. Eu, que trabalhei com adolescentes, assumindo responsabilidade pela educação formal deles, defendo que os programas televisivos fariam bem se abraçassem essa ideia com criatividade

Educar com bom humor e descontração é possível. O professor não vai desejar que seus alunos se divirtam enquanto fazem as tarefas que exigem concentração. O apresentador provavelmente vai explorar a tensão do participante ou a atenção do telespectador nos momentos mais críticos das competições. Isso para afirmar que não há assim tanto risco de descambar para a bagunça, quando o importante é pôr os neurônios a funcionar sem um tom grave. Não convêm aos programas de televisão e também não é meta dos professores serem sisudos. 

Não sei por que o modelo "útil e com significado" não vinga... Será tão difícil como fazer uma boa comédia? Talvez. Será que esse tipo de modelo depende de paixão? O apresentador de televisão teria que ser um apaixonado pelo tema do programa, um apaixonado ao ponto de fazer rir e ao mesmo tempo acender a vontade de saber? O professor teria que conhecer seu tema com profundidade e com paixão, para oferecê-lo com encanto e sem tom chato?

Uma pista ou um paralelo talvez esteja no caminho do filme "Bee Season". Sugiro que vejam o trailer, pelo menos:


Há no filme uma menina que entra em campeonatos de Spelling Bee (Flora Cross); é a segunda filha de um professor universitário que vive certas facetas da vida pessoal e familiar com intensidade. Quem dá vida à personagem desse professor obcecado é nada mais nada menos que Richard Gere... A menina, interpretada por uma atriz muito bonita à altura das filmagens, canaliza um dom, uma mágica, uma mística que aplica aos concursos. 

Pensei no filme, quando vi o caso do concurso no "Caldeirão do Huck"; fiquei com a dúvida: algum tipo de entrega (emocional, intelectual, física) deve ser condição para o sucesso? Alguma entrega, que não pode ser do gênero "quero meus 5 minutos de fama", tem que existir nos programas de televisão?

A menina do filme entrega-se aos métodos de estudo do pai e deles consegue escapulir, ao perceber que a harmonia familiar merece esse sacrifício. É que a mãe (Juliette Binoche) e o irmão (Max Minghella) não cabem, tal como são, naquela dinâmica familiar de perfeccionismo e de brilhantismo. Têm segredos difíceis de defender em voz alta, diante de um pai de família muito rígido. O pai não permite que eles entrem no campo que ele cria para o desenvolvimento intelectual e espiritual da filha, na qual ele vê uma vencedora, uma potência.

Duras realidades familiares, frustrações, defeitos que não podem ser escondidos.

O que me intriga, no filme "Bee Season", é a transformação da menina. Ela aceita o desafio dos concursos de soletrar, ela participa neles, ela adere aos métodos preparatórios do pai e ela por fim compreende que está em jogo o direito de cada membro daquela família a ter visibilidade e a ser falível e, então, faz de conta que não é capaz de vencer os concursos!

Voltando aos programas de televisão, à educação e à graça com que uma pessoa pode tomar posse de um tema ou de um domínio, a minha conclusão: a entrega faz a diferença. A entrega foi o primeiro nome que eu encontrei, enquanto ia escrevendo, para falar de uma coisa que no fundo penso que se chama GENEROSIDADE.

Apresentar um programa de televisão quando se sabe o que se está a fazer, faz a diferença. O apresentador entrega-se ao público, à transmissão, ao tema.

Participar num concurso cujo tema é um tema caro ao participante, faz a diferença. Isso é dar o melhor de si, é ser generoso.

Ser capaz de tomar o partido da educação, em sala de aula ou na televisão, faz a diferença. É uma forma de generosidade em que eu acredito piamente! É querer que os outros, seus iguais, tenham direito a se preparar para a vida.

Pode ser que nada disso garanta o sucesso, mas faz ganhar consciência, dá sentido, corporifica conceitos, valores. 

Luciano Huck, que concluiu o curso de Direito e também o de Jornalismo na Universidade de São Paulo, tem que saber português! Tem que ser generoso com quem está estudando, com quem estudou menos do que ele, com quem não ocupa a posição que ele ocupa numa importante emissora de televisão, com que pode vir a gostar de somar conhecimento, nem que seja para competir no Spelling Bee/Soletrando do "Caldeirão do Huck".

Estarei delirando?

PS - um último ponto, num texto que mistura tanta coisa: por falar em personagens novinhas, crianças, que canalizam qualquer coisa de muito valor para a família, não passo sem lembrar a menina de "Little Miss Sunshine", de 2006. Quem ainda não viu a menina que entra num concurso aos cuidados do avô, tem que ver! Impagável... O papel da mãe da menina coube a Toni Collette, que fez antes disso "In her shoes", de 2005, e "Muriel's wedding", de 1994, dois filmes deliciosos.