Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


sábado, 29 de dezembro de 2012

O coração é um cérebro?


Porto, Portugal, 14 de dezembro de 2012. Lá se vão alguns dias desde que o Espaço t - Associação para Apoio à Integração Social e Comunitária, encerrou as atividades do seu sétimo congresso internacional.

A participação de palestrantes e público em torno do tema da felicidade oscilava do pueril reconhecido com algum embaraço à declarada defesa dos infelizes (prostitutas e também homens e mulheres com muita preguiça para os rituais que envolvem a construção de uma história de amor).

Era a segunda e última mesa-redonda da tarde e os esforços estavam concentrados no entendimento das relações entre amor, felicidade e sexo, por isso os discursos rondarem a esfera dos que vendem afeto e dos que querem comprá-lo a preços mais baixos, na prateleira do cibersexo, por exemplo.

De um dos lados da mediadora, a jornalista Conceição Queiroz, estavam uma socióloga e um sociólogo, do outro, um psiquiatra e um linguista. Todos os cinco haviam sido convidados para sentar em poltronas aveludadas, cada uma em uma cor e um desenho próprios.

As idades também eram distintas entre os membros do grupo, como distintas foram as opções de apresentação. A socióloga Inês Fontinha fez-se entender a partir de conceitos que são a base do trabalho dela com mulheres prostituídas, como o de “problema social”; o psiquiatra António Pacheco Palha também buscou definições, depois de recusar resposta a uma pergunta que considerou fora de foco, mas a atenção dele – e a nossa, é claro - recaiu sobre as definições de dicionário e os resultados de pesquisas internacionais; o sociólogo Telmo Fernandes se apegou a fotografias, duas delas muito interessantes, pois nelas está Kathrine Switzer, a 1ª mulher a oficialmente correr uma maratona, e homens que, no decorrer da prova de Boston, em 1967, ou apoiaram-na ou tentaram impedir que ela chegasse à meta; o linguista Pedro Chagas Freitas levantou-se para ler uma espécie de manifesto, que falava em insegurança e na consequente resignação com qualquer coisa que se aproxima da felicidade, mas que é apenas subfelicidade.



Certo é que todos eles apontaram caminhos, entre a margem que a incerteza e o riso permitem.

Em seguida a essas quatro abordagens, ainda houve tempo para que viesse ao encontro do público um senhor espanhol de nome José Maria Dória, com uma apresentação intitulada “Un mundo feliz”.

De acordo com essa última perspectiva (que antecedeu apenas dois discursos interessantes, mas protocolares), a felicidade é um estado de consciência, é a tão comentada espiritualidade, a que acedemos quando superamos sensações de carência.

Já antes eu, parte da plateia, tinha ouvido discursos semelhantes a esse, que ouço quase como instruções acerca de como admitir dor sem gerar sofrimento e por aí afora, mas esbarrei naquele dia em algumas coordenadas que fizeram eco, e já conto o porquê.

Mais do que qualquer outra informação ou reflexão anteriormente posta à mesa, guardei mais fundo a ideia de que o coração sabe, sente, intui, adianta-se, responde, toma decisões e pode, por isso tudo, ser a nossa esperança de integração, de unidade, uma vez que a razão não nos tem conduzido a bom porto. A mensagem foi diretamente para o título dessa minha cronicazinha, justamente.

Se medo e amor estão em compartimentos conectados, como afirmou o orador, dentro do sistema que se ensina na escola, lá atrás na nossa educação formal, sob o nome de “vasos comunicantes”, que conclusões são possíveis? Ai de quem nunca aprende a parar de alimentar o tanque do medo, pois estará sempre a interferir na pressão sobre o amor? Será essa uma dedução correta? Não sei dizer. Qual será a densidade do medo? Qual será a do amor? Misturam-se? Como caminham para o equilíbrio? Bom, entendo mal uma coisas dessas, embora tenha tido, em casa, um pai que falava vezes sem conta nos vasos comunicantes e em como se aplicam a muito da nossa vida prática.

Penso e com esse pensamento concluo, que o amor precisa de combustíveis, nem que seja uma dose de medo, mas antes de tudo precisa de ar, que é o mesmo que tempo, que amadurecimento ou, por outro lado, é o mesmo que inocência. Só a inocência permite alguns começos, as pessoas inocentes é que podem dar início a determinadas histórias, porque não a relacionam a traumas, a preconceitos, a dores de amores… Pessoas crescidas, no entanto, sabem o que é a ternura, valorizam-na. Em diferentes estágios de desenvolvimento, enfim, o coração e a inteligência dele podiam ser motores para um salto maior, um desenvolvimento de toda e qualquer fase do homem; o coração poderia apontar em que direção está a confluência, a coincidência, a encruzilhada com a qual saímos todos ganhando e por isso mesmo, felizes. O coração, consultado no momento a seguir às separações matrimoniais e ao reconhecimento de que estamos endividados, por exemplo, devia nos dar alento suficiente para mudanças de rumo, para recomeços em outras rotas, com novos hábitos, novos olhares, ou com os amores de que nos afastamos. Quem gosta de você? Onde está quem gosta de você?






Wall.e




Começou com uma música, um robô e uma barata muito estimada que, afinal, podia muito bem fazer parte daquele cenário de fim de mundo pardacento.

Wall.e, o robô, tinha a barriga grande como um forno, correntes nos dois lados do corpo, para se locomover à semelhança de um tanque de guerra, olhos que me impressionaram pelo formato e pelo tamanho, e duas mãozinhas como que à espera de outras mãos.

Estava sempre a trabalhar. Extrapolava a função para a qual fora criado, a de limpar o mundo dos detritos acumulados por gente cada vez mais desprovida de senso de responsabilidade: enquanto compactava o lixo, ele selecionava o que reluzisse e, então, deslocava esse lixo especial para um arquivo só dele.

Sentido de missão, lá isso ele tinha. E trabalhava sem desligar o botão da curiosidade. Era capaz de interromper a cansativa e inesgotável tarefa de limpar o mundo, para ouvir e ver musicais, como “Hello, Dolly!”, pois tudo está conectado, tudo tem um sentido caro. Wall.e estava atento às luzes, também, e por isso recebeu Eva tão logo uma nave a deixou à superfície.

Fôssemos nós, alguns de nós pelo menos, chatos que desejam tudo menos atender bem, tudo menos olhar de frente, tudo menos dar-se ao trabalho de compreender, e os pequenos tesouros estariam para sempre enterrados e os outros, esses estariam sós, irremediavelmente sós à procura de vida.

Bom, acontece que Eva não era como Wall.e. Fora concebida com um desenho mais elegante, talvez, os olhos emitiam uma luz azul (que apesar de fria, sabe-se lá por que, costuma ser entendida como uma credencial para o universo que vale a pena, o dos ricos e famosos), cheirava a higiene a brancura do material com que fora revestida. E não havia com ela hora para a diversão. Eva chegara para rastrear qualquer vestígio de vida, mas saberia o que vida quer dizer? Saberia dar com os presentes escondidos?

Eva reconheceu uma plantinha sobrevivente, guardada por causa da boa vontade de Wall.e, mas não reconheceu nele o desejo de mais vida. Ou só o reconheceu bem mais à frente. No princípio, nem aos musicais a sua doçura estava aberta. Fora formatada para bem menos do que esses encontros felizes…

A respeito de formatações, vale lembrar que, no início do século XIX, passou a existir, por obra da escritora inglesa Mary Shelley, um monstro que pedia uma companheira em cujas características ele se reconhecesse, uma igual, enfim. A incompreensão causava dor à criatura do Dr. Frankenstein. Há poucos anos, por outro lado, a Pixar, da Walt Disney Company, criou esse robô Wall.e igualmente esperançoso de um par romântico, mas que não tinha interlocutores aos quais se lamentar, a fim de conquistar o direito a um par com perfil pré-definido e mais apropriado do que outros perfis. Eva e ele não se pareciam, mas estava tudo bem. Wall.e queria passear, dar as mãos, cantar e dançar. No mundo dele, bolas, a música de fundo podia ser “What a wonderful world”, na voz de Louis Armstrong! A solidão e a consciência de que antes do fim do mundo existiam casais amorosos eram bons augúrios.

O filme tem muito mais, claro, mas hoje, às vésperas de mudar de ano, pensei nas nossas casas mal pensadas para o rigor do frio, do calor, das chuvas etc. Pensei nas tantas coisas concretas e indispensáveis, mal feitas e mal remediadas, que parecem interessar a pouca gente, a pouca gente desperta e disposta a arregaçar as mangas. Hoje sou eu a sentir na pele o quanto o descaso aliena e torna o espaço habitável pior do que pode ser. Não por acaso sinto-o na pele e não posso deixar de lamentar; estaremos cansados demais para construir com mais responsabilidade? Estaremos desatentos demais? Estaremos atrasados demais? E será que daqui a algum tempo ficaremos roliços e lentos como os humanos que tiveram de abdicar de um vasto espaço e depositar toda a confiança em Wall.e e Eva? Quem fará nossos robôs salvadores com um bocadinho do seu próprio coração?!

sábado, 8 de dezembro de 2012

As vantagens de ser invisível


“We accept the love we think we deserve” é uma das frases do filme “The perks of being a wallflower”, repetida de professor para aluno e deste para uma amiga. No segundo caso, a frase serviu como resposta à pergunta “Why do I and everyone I love pick people who treat us like we're nothing?”.

Há montes de artigos a respeito do filme na internet. Não quis ler muitos, para manter-me mais livre no momento de escrever.

Quis saber, isso sim, em quais situações a palavra “wallflower” é utilizada. Descobri que é aplicada num contexto fácil de visualizar, presente na trama do filme: quem pode ser chamado “wallflower” isola-se durante as festas, naqueles cantos onde não se dança; são as pessoas que vão a uma festa sozinhas, por exemplo, e não se soltam a dançar ou puxar assunto de forma a conhecer outras pessoas.

Fui wallflower? Não me refugiava nos cantos do salão. Eu participava. Sempre dancei, mesmo sem a exuberância das personagens do filme, mostrada numa cena que tem esta música:



Só que, ao mesmo tempo em que participava, sentia-me transparente, como o protagonista se sentia antes de conhecer um determinado grupo de amigos. Às vezes ainda me sinto assim, como acontece a muita gente boa que está a precisar de espelho para se enxergar e não se retrair.

Decididamente não fui como o protagonista do filme, quando se trata de generosidade ao entender e acolher, sem julgar. Muitas vezes eu passei sem entender. A assimilação ou era lenta ou está muito mais vincada em mim, hoje. É igualmente verdade que a capacidade de assimilar existiu em força e ficou para trás, como por exemplo numa situação dos meus 11 anos, que uma conversa com um amigo trouxe à tona duas décadas depois, para mostrar como eu lhe tinha dado ânimo logo que nos conhecemos, porque o enxerguei.

Enfim, o que eu vi no cinema tem um pouco dos adolescentes que eu conheci e da adolescente que fui. Tem, ainda, algo da adulta em que me tornei; durante a fase adulta é possível experimentar emoções tão perturbadoras (ia dizer transformadoras, mas talvez seja exagero, pois os adultos podem estar muito cansados para mudanças de dentro para fora) quanto as das personagens do filme.

Mas vamos povoar de verdade a cena do filme, dando nome aos bois, porque se eu falar da minha experiência de adolescente, pode não soar tão credível quanto eu desejo.

No filme “The perks of being a wallflower” existe o Charlie, existe a Sam, existe o Patrick, existe a Mary Elizabeth. E mais uma constelação de amigos, parentes e opositores.

No fundo todos têm a impressão de que são uns desajustados, “misfit toys”, como Sam os define, mas se divertem. A própria Sam era embebedada nas festas, pelos rapazes, e depois passou a escolher namorados sempre infiéis. Patrick mantém segredo sobre um namorado que não quer assumir a homossexualidade, embora diga que o ama. Mary Elizabeth faz de conta que está mais zangada do que realmente está, para que não ousem criticá-la.

Quem entra para o grupo mais tarde é Charlie. Não tem amigos, enfrentou uma estafa por causa de traumas e teme os anos de high school, conforme vamos sabendo à medida que escreve para desabafar.

Mas que mudança acontece, então, no tipo de satisfação que ele consegue ter! Começa a viver situações e mais situações com os amigos novos, os que o acolhem, e a tempestade não desaparece, antes vira um chiste. Por exemplo: Patrick sabe que Charlie está em recuperação, sob cuidados médicos, e ao invés de orientar a conversa para os alertas, as chamadas de atenção, faz rir ao dizer que já está prevista outra crise para amigo, dentro de um certo tempo, da mesma forma que os outros podem contar com uma viagem ou o início de um curso.

Charlie faz progressos inclusive quando se aproxima da redescoberta de um dia muito duro na sua infância.  

Mais do que pensar, mais do que sentir, Charlie adquire muito jeito para dar, para receber, para se atirar - as cenas de “The Rocky Horror Picture Show” em que ele atua vestido de mulher, demonstram isso -, até ver o momento e, em cada momento, o infinito.

Se a amizade redime? Com toda a certeza, na ficção e na vida privada dos que têm a sorte dessa vivência e de escolher amores bonitos.



terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Artigo 2

Outro artigo escrito por mim e publicado na mesma revista:


http://sibila.com.br/cultura/crise-economica-afeta-cultura-em-portugal/8633


terça-feira, 6 de novembro de 2012

Artigo 1

Artigo de crítica literária que eu finalmente publiquei, em:

 http://sibila.com.br/novos-e-criticos/outra-versao-de-machado-de-assis/8337


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"Se lágrima fosse de pedra, eu choraria"

O samba é relativamente recente e o sambista, dos bons.

O sambista atende pelo nome de Paulinho da Viola, conhecido dos brasileiros.

Ao samba, Paulinho chamou "Bebadosamba", e eu fui buscar a primeira frase para o título deste post.

Ela faz as vezes de contraponto a um pensamento caro: faz de conta que alguém fala em voz alta e verbaliza uma lembrança, recorda uma referência que é uma pérola (de ironia), como ele próprio explica: "Um mestre do verso, de olhar destemido, disse uma vez, com certa ironia, se lágrima fosse de pedra, eu choraria".

Durante uns tempos eu ouvia essa música e pensava na lágrima de pedra como uma aberração, um exagero de mau gosto, estranhamente colocado numa música tão boa de ouvir.

Não vale a pena ser maniqueísta... o mau, o bom... em quantas situações é difícil separar um do outro, a não ser quando se atinge um limite pessoal, penso eu. 

Por que seria de mau gosto sugerir um choro que dói mais do que o comum? 

Por que a boa música tem que ser impoluta, livre de beliscões?

Eu ouvia a música e desenhava o contorno de pequenos cubos a irromperem, a caírem do canto do olho, não em linha mas projetados para a frente do rosto. Ao ver esses cubos no ar, a expressão no rosto de quem já chorava outro desconsolo ficava mais triste! 

O sofrimento me parecia multiplicado, brotava das palavras do sambista como algo duro de ouvir e surgia no desenho como um horror...

Quando se lê certos livros, compostos com extremos de grotesco, por exemplo, as imagens sugeridas por palavras ou ilustradas de verdade devem ser levadas a sério. É o caso de A Metamorfose, do Kafka, que o leitor concebe melhor se aceitar que Gregor Samsa acordou um dia transformado num inseto repugnante. Não é uma suposição nem uma metáfora, é a vida dele e ponto.

A vida, dizem os livros e as letras de música, tem dessas ciladas. É algo que livros e músicas nos podem ensinar, se quisermos viver com a realidade. E se formos do tipo que acredita em transcendência. A transcendência passa a fazer mais sentido, se soubermos o que ultrapassar.

Ao final da letra do samba, para quem é observador, está lá:


"Meu choro, Boca,
...
serve,
antes de tudo,
para aliviar o peso das palavras,
que ninguém é de pedra"



Claro que as lágrimas são para todos.

O homem comum nem pensa se chora a lágrima comum ou não. Ele apenas chora.

Homem que se quer de pedra, brinca ao dizer que chora lágrima de pedra.

Mas todo mundo chora a lágrima possível, a lágrima do tamanho da sua dor.

Claro está, ou claro fica. 

Nada é perfeito, é tudo muito real, é tudo feito de pedra. 



Um livro para muitos gatos


De Catherine Labey, desenhadora com pelo menos nove títulos de banda desenhada ligados à literatura de ficção, é possível conhecer histórias curtas, recorrendo ao blog que ela própria mantém: pinturasebdcatlabey.blogspot.com. Estão expostas aguarelas e acrílicos, além das BDs. Encontramos, por exemplo, A Carta Roubada, feita a partir de conto do escritor norte-americano Edgar Allan Poe, e As Velhas Chinelas, que é parte do álbum Novos Contos das Mil e Uma Noites. 
A artista, nascida em França no ano de 1945 e naturalizada portuguesa em 1975, também assina os desenhos do livro Provérbios… com Gatos!. A edição é recente (foi lançada em abril de 2012) e pode ser vista na secção infantil das grandes livrarias portuguesas.
O livro contém uma seleção de 90 provérbios em língua portuguesa, representados visualmente ora em uma tira de apenas uma vinheta, ora em uma tira subdividida em duas ou três vinhetas. Cada página tem duas tiras, todas elas coloridas[1].
A primeira orelha do livro apresenta ao leitor um pequeno texto acerca da autora e a segunda chama atenção, ainda que muito vagamente, para o universo dos provérbios: “Muitos provérbios existem também além-fronteiras, outros têm um sabor essencialmente português”.
Saltam do 3º § dessa segunda dobra do livro algumas questões: qual a definição de provérbio? Qual a origem dos provérbios? Qual o alcance ou qual a zona de abrangência de um provérbio?
Não é exagero lembrar, numa época de tanta informação e de pouco conhecimento, que os provérbios estão dentro de um grande conjunto a que damos o nome de Literatura Oral.
Os aforismos cabem nesse mesmo conjunto, as fábulas, as parábolas e os contos tradicionais também. Estes últimos surgiram mais recentemente, no entanto. Todos remetem à necessidade de divertir e de educar, na qual os bons narradores orais iam investindo energia.
Vale a pena imaginar a seguinte cena: numa espécie de ritual à volta de uma fogueira, havia pessoas que assumiam a função de narrar e, então, contavam a história que mais desse ao restante do grupo força e motivação, entre outras virtudes. Força e motivação deveriam ser suficientes para que os membros do grupo enfrentassem as dificuldades típicas daquele contexto social e histórico.
Em épocas remotas era imperativo enfrentar perigos naturais, como caçar para sobreviver ou percorrer longas distâncias para chegar a um novo local de alojamento, após a derrota para um inimigo. Relatos acerca de quem tivesse conquistado uma vitória, provavelmente encorajavam os ouvintes. Na tradição oral, esses relatos cabiam ao narrador.
A literatura, nesse sentido, dava o melhor uso possível à magia da palavra e à comunicação interpessoal, aproveitando a capacidade de memorização dos ouvintes.
O recurso à palavra foi documentado e hoje sabemos inclusive que contar histórias fazia parte da rotina dos homens de épocas primordiais. Inscrições em pedras e em pergaminhos foram alguns dos documentos que permitiram aos investigadores constatar a transformação da experiência em palavra.
Histórias que hoje assumimos como parte da identidade coletiva do nosso país (ou de uma região em particular, dentro do nosso país) tiveram numerosas versões, em tempos passados.
Isso pode significar que a partir de uma origem comum, mesmo que de difícil precisão na linha do tempo, as histórias iam gradativamente sendo modificadas. As modificações incidiam mais na introdução e talvez nascessem do referido desejo de promover identificação entre o ouvinte e a história.
Tudo isso garantiu vida longa aos provérbios.
Eles condensavam tramas, enredos, tinham o poder de resumir uma história mais demorada e, assim, ouvintes aderiam a esse artifício. Os provérbios se moldavam ao lugar e ao grupo que habitava esse lugar, e então eram repetidos, transmitidos.
Hoje, enquanto conversamos e aconselhamos, para que nosso interlocutor tenha a certeza de que compreendemos uma situação, para que saiba se estamos contra ou a favor de um ponto de vista, também usamos os provérbios. Atingimos mais depressa um ponto, se os usarmos.
Um provérbio, nesse sentido, é parte do nosso código, é também uma convenção e, por ser aceite no seio de um grupo, o nosso grupo social, ajuda a dar forma à nossa identidade.
Levados ao mundo da banda desenhada, os provérbios ajudam a compor, também, a identidade visual do público a que servem.


Os 90 provérbios selecionados por Catherine Labey falam quiçá mais com o público português do que parece.
Os gatos que Catherine Labey desenhou para repor os provérbios em nosso dia a dia são personagens vadias que saltam um muro, entram num buraco, deslizam por nossas varandas, à procura do sol da tarde. Têm que ver com uma certa calma e com um certo espírito de sobrevivência aguçado (mas não tão tenso quanto em outros lugares), que estão na vida das pessoas em Portugal.
Não é o país que se quer cosmopolita para não aludir às raízes, não é o país que se pergunta a toda hora o que tem sido feito dos impulsos para protestar e para romper barreiras.
Os gatos de Catherine Labey e os provérbios, ao mesmo tempo universais e locais, estão a serviço de um país de ruas de paralelo ou de alcatrão e, ainda assim, cheias de terra e de areia, propícias ao trânsito dos animais. País que estrangeiros como a desenhadora Catherine Labey deixam penetrar debaixo da pele, porque tem um ritmo acolhedor, uma paisagem branda e bucólica, uma sabedoria que em lugares de ritmo mais frenético deixou de fazer sentido - ou nunca o fez, sequer.


[1] Na crítica de João Miguel Lameiras, publicada no periódico As beiras do dia 14.05.2012 (http://www.asbeiras.pt/2012/05/bd-gatos/), lemos, a propósito das cores: “(…) este livro é uma bela ideia. Bela ideia, que só teria a ganhar com um tratamento de cor mais plana, pois a cor digital de Labey tem demasiado brilhos e efeitos de Photoshop que não combinam bem com a elegância clássica e algo naif do traço da autora”. 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Para "enfeitar o pensamento", como diz a música...




Fonte: acervo pessoal de Betina dos Santos Ruiz

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Às voltas com as orações (dos loucos e dos poetas)



O poema com que hoje volto ao blog, fui buscar nas minhas lembranças de há uns 10 anos... 
As aulas eram novas, então,  e eram empolgantes.
Colegas de turma doces e disponíveis para entender, ficavam comovidos, saíam transformados e ainda riam - riem até hoje, muito, dou a minha palavra.
O autor do poema, meu Deus o autor! Mais um mexicano assaltado por grandes temores e fortes luzes. Trágico, conturbado, preciso.
Há minutos, ouvindo uma música brasileira ("Oração ao Tempo", que eu também transcrevo), deu-se o cruzamento e pronto, verdade seja dita: 

a gente se perde para ter alguma chance nesse mundo e, depois, haja amor, haja prática gentil, haja doçura e haja prudência, que esse mundo não é fácil, põe-nos mais ao alcance das mãos o que estilhaça do que nos dá fé do que constrói! E o que constrói está dentro, é desde sempre nosso...

Eu por cá ando a subir pelas paredes de um poço, o mais real que eu vi, e sei que haverá dia claro quando chegar ao topo.


Hoy Como Nunca

 

Ramon Lopez Velarde



A Enrique González Martínez
Hoy, como nunca, me enamoras y me entristeces;
si queda en mí una lágrima, yo la excito a que lave
nuestras dos lobregueces.
Hoy, como nunca, urge que tu paz me presida;
pero ya tu garganta sólo es una sufrida
blancura, que se asfixia bajo toses y toses,
y toda tú una epístola de rasgos moribundos
colmada de dramáticos adioses.
Hoy, como nunca, es venerable tu esencia
y quebradizo el vaso de tu cuerpo,
y sólo puedes darme la exquisita dolencia
de un reloj de agonías, cuyo tic-tac nos marca
el minuto de hielo en que los pies que amamos
han de pisar el hielo de la fúnebre barca.
Yo estoy en la ribera y te miro embarcarte:
huyes por el río sordo, y en mi alma destilas
el clima de esas tardes de ventisca y de polvo
en las que doblan solas las esquilas.
Mi espíritu es un paño de ánimas, un paño
de ánimas de iglesia siempre menesterosa;
es un paño de ánimas goteando de cera,
hollado y roto por la grey astrosa.
No soy más que una nave de parroquia en penuria,
nave en que se celebran eternos funerales,
porque una lluvia terca no permite
sacar el ataúd a las calles rurales.
Fuera de mí, la lluvia; dentro de mí, el clamor
cavernoso y creciente de un salmista;
mi conciencia, mojada por el hisopo, es un
ciprés que en una huerta conventual se contrista.
Ya mi lluvia es diluvio, y no miraré el rayo
del sol sobre mi arca, porque ha de quedar roto
mi corazón la noche cuadragésima;
no guardaba mis pupilas ni un matiz remoto
de la lumbre solar que tostó mis espigas;
mi vida sólo es una prolongación de exequias
bajo las cataratas enemigas.


Oração ao tempo

Caetano Veloso
Es um senhor tão bonito

Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo

Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo

O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo


sábado, 21 de julho de 2012

A criança que se faz ver

Por duas vezes, nesta semana, vi crianças que me deram alento.

Primeiro, numa loja popular.

Distraída, quase perdida, reencontrei uma senhora um pouco mais velha do que eu, muito elegante, contida para falar como raramente se vê.

Estivemos bastante tempo em pé, perto das piscinas, das bóias e das braçadeiras à venda.

Ouvi narrativas dela sobre a neta, sobre a mãe – outra senhora que eu conheço e admiro -, sobre escola etc, sempre tentando eu mesma ser contida na minha forma de responder e de dosear, por saber que as minhas impressões mais rápidas geralmente estão cheias de ideias duras, e é preciso ter cuidado com isso.

E de repente eu tive a certeza, enquanto a ouvia, de que ali dentro, mais magrinha do que aquela mulher magra, estava uma menina contente. Contente com o que contava, contente em contar, a balançar uma das pernas, a perna assim meio suspensa no ar, a tocar o chão para em seguida subir para o ar de novo. Isso mesmo, a narrativa tinha o ritmo daquela perna que ia e vinha.



Que graça de visão.

Estar em paz com papéis assumidos na mais pura pressão em que vivemos é uma bênção, deve ser como ter a figurinha de criança a brincar, solta em você, no seu corpo gasto de adulto.

Saí de lá eu própria mais apaziguada.

E hoje, então, foi a vez do menino.

Um encontro ao mesmo tempo intelectual e político, não no sentido mais amplo do termo, mas político, sim, porque havia a intenção de promover um debate (sobre arte, sobre a assunção de papéis em família, em sociedade, na criação artística etc).

Eu que estudei cartas femininas, no mestrado e depois, no doutoramento, ia acompanhando as ideias e ia tendo meus flashes, mas nada que eu desejasse dizer em voz alta.

Ou cansaço ou timidez, estive mais concentrada naquilo que era a apresentação de um livro de uma conhecida minha, sem palpitar.

Vi que no espaço agradável da reunião, um homem da minha idade se apresentara vestido de uma maneira tão pouco vulgar para um português, que até admirava.

Ele tinha uns calções muito parecidos com esses que a gente coloca para ir jogar bola: tecido sintético, com um pouco de brilho, larguinho, até o joelho, sem costura ou detalhe que chame atenção.

A parte de cima? Uma camisa quadriculada, da cor já não me lembro.

E um par de ténis/sapatilha preta, com meias puxadas pra cima, sem fricote, sem moda.

Pensei, então: ai que vontade de perguntar se ele vai jogar futebol daqui a pouco!

Mas naquele contexto, não. Não tem piada pôr alguém na berlinda sem mais nem menos. Esse tipo de intimidade não faz sentido aqui.

Enfim, ele me pareceu tão contente e tão risonho, que lembrava de verdade os meninos em clima de brincadeira, de partida, de descontracção.

E eu o conheço. É um tipo bem inteligente, culto, incrivelmente à vontade com as opiniões que expõe em voz alta.

Como consegue? Não vejo um raio de tensão, sequer, quando ele afirma ou quando ouve alguém que discorda.

É o menino, está visto!

Dentro dele está uma fagulha daquela criança que se diverte e, por isso, namora com as ideias complicadas, provoca, com ideias, quem o ouve, sem ferir, sem competir, sem chatear a sério.

Meu palpite?

Agora quero dizer: onde andará minha Betininha: fofa, pequena, peralta, que fazia discurso para as amigas da mãe, que queria sempre prolongar a corrida e o pega-pega, que era capaz de comer fatias e mais fatias de bolo, até a barriga doer? Que vibrava quando começa em algum lugar uma música de que ela gostava... e que dançava, e que inventava.

É atrás dessa figurinha que eu tenho que ir.

Às vezes um ângulo do meu filho me mostra uma pontinha daquela vivacidade, daquela energia, e eu sinto crescer a vontade de cuidar melhor dela, cuidando de mim e, sem dúvida, cuidando dele também.

Talvez as coisas se processem melhor em outra ordem: estando eu aborrecida, pergunto-me o que ela desejaria, o que traria a calma até ela de novo. Seria, portanto, cuidar dela para cuidar de mim e, bem cuidada, cuidar do meu menino.

Desses assuntos de ternura entende o Milton Nascimento, que cantou e canta:

Há um menino, há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão






quarta-feira, 27 de junho de 2012

O caminho, a estrada


O português cisma mais do que o brasileiro, quando o assunto é separar em categorias.
Para ele, “estrada” é a mesma coisa que “rua” para o brasileiro, mas “auto-estrada” é diferente, é a “estrada” ou a “rodovia” do brasileiro. As palavras são semelhantes, uma está contida na outra; já o que elas indicam, nem tanto.
A “via rápida” é outra história, nem estrada nem auto-estrada, mas mais ou menos uma avenida movimentada, que deve desembocar nalguma auto-estrada.
Também tem “avenida” e tem “travessa”, esta última aparece gravada na placa pregada à parede de uma casa de esquina ou na de um banco etc; se fosse no Brasil, “travessa” só seria ouvida durante a explicação de um trajeto, por exemplo, e sempre para aludir ao desenho que uma rua forma com a outra.
Um “caminho” pode ser poético, em Portugal, como os “Caminhos do Romântico”, percursos temáticos pela cidade do Porto, aos quais os turistas supostamente devem ser mais sensíveis.
“Lugar” eu nem sei empregar… é um ponto no mapa, pronto! Tem muito “Lugar de baixo”, em Portugal, tem ainda “Lugar da Chentuada”, que é uma morada ou um endereço. “Lugar” é um pouco mais impreciso do que “terra”, palavra que aqui também se utiliza para indicar uma origem, uma procedência nada cosmopolita, aquele pequeno espaço de onde fulano veio e sobre o qual falam com certo embaraço.
“Freguesia” é o bairro.
“Sítio” é termo português que eu penso já ser mais familiar para o brasileiro, por causa da nomenclatura relativa à Internet e até por causa do uso genérico que aqui tem; seria, grosso modo, o nosso “lugar” - em nada parecido com o tipo de propriedade agrícola que “sítio” designa no Brasil.
E tudo isso, é claro, eu vou contando na minha verve paulistana que, para muita gente, quer dizer ela própria quase nada, já que em São Paulo cortamos as frases antes de elas estarem desenvolvidas e cortamos as palavras, na pressa de pronunciá-las. Quem quer que esteja em trânsito, há-de chegar ao seu destino, naquele mega-aglomerado que é ao mesmo tempo uma cidade caótica e bem sinalizada. Ninguém liga muito ao como fala, em São Paulo, mas todo mundo se comunica para não perder a viagem, literalmente.
Enfim, aqui em Portugal dá-se o inverso, o território é falado em linguagem específica, bem aplicada, que no fundo pode ser o mínimo que se exige em termos de organização. No entanto há uma excepção engraçada, pois em qualquer auto-estrada, os portugueses apelam para uma sinalização tão característica quanto “Outras direcções”. Assim não dá! O estrangeiro em viagem por este pequeno país só se desenrasca se tiver ou imaginação ou faro! Quantas direcções caberão no “Outras direcções”, se o país é desconhecido de quem se orienta pelas placas?
E bem neste paradeiro, pensado com uma lógica no mais das vezes clara, para que as dúvidas espaciais não se instalem, eu vim parar sem a paranóia dos mapas, sem o medo de comer poeira, mas quase completamente ausente de direcção interna.
Vim disposta a amar cada centímetro dessa minha outra casa, sem saber como uma pessoa desenvolve a capacidade de se inventar e de amar a si mesma, sobretudo, durante a travessia.
As referências que eu trazia, são úteis ainda hoje?
Penso num provérbio árabe que me surpreendeu por muito tempo: “Louco é o viajante que quer construir uma casa no caminho”.  
Penso em Carlos Drummond de Andrade, com o arquiconhecido poema “No meio do caminho tinha uma pedra”.
Penso nos Novos Baianos, grupo musical extinto e entretanto fresco (na memória), com seu refrão irreverente, “Caia na estrada e perigas ver”. Em cada parte da canção eles o completavam com uma realidade bem mais rasa do que os sonhos, só para nos provocar. A título de ilustração, lembro o que eles cantavam: “Caia na estrada e perigas ver: a mulher que andou na linha, o trem matou”.
É justamente o avesso da previsibilidade desejada pelo português. Segundo os Novos Baianos, a gente deve rir da mulher que deseja andar na linha, porque o fim dela é duro e a linha do trem, essa continua, essa é de ferro.
Eu rio do pragmatismo às avessas dos artistas baianos, que só nos querem pôr em movimento, sem ideias pré-concebidas.
Finalmente, penso no Lô Borges, talvez pouco conhecido em Portugal:

Com sol e chuva você sonhava/
Que ia ser melhor depois/
Você queria ser o grande herói das estradas/ 
Tudo que você queria ser/
Sei um segredo: você tem medo/
Só pensa agora em voltar/
Não fala mais na bota e do anel de Zapata/
Tudo que você devia ser/ sem medo”

Entre objectividade e acidentes de percurso, que rota seguir?
Existe mesmo uma encruzilhada, um caminho à esquerda e outro à direita na vida?
Será que o provérbio árabe nos ensina que parar e construir a casa é um mero acidente?
Uma pessoa parte para o desconhecido, encanta-se com as novas paisagens, interrompe a caminhada e… pronto, está a abrir mão do essencial, do próprio caminhar, da própria busca?
Uma pessoa parte, topa numa pedra, vem um pasmo interior e ela fica a lembrar desse pasmo infinitamente, por mais vulgares que as pedras no caminho sejam?
Uma pessoa observa os tipos na estrada e ri? Ou não os observa, pois assim concentra forças para continuar a escolher seus percursos com liberdade?
Uma pessoa se aventura, faz projectos, desbrava e as pressões falam tão alto que ela quase assume que não pode ser: sonhar e conquistar estão a dar-lhe cabo da vida!
Que sementes dão cabo da nossa cabeça?
Qual a lógica que dá melhor forma à vida e qual a deforma?
Se penso na literatura, fecho com Guimarães Rosa, que é sempre bom remate, ao colocar pensamento dentro de pensamento, história dentro de história:

“Chegando na encruzilhada, eu tive de resolver. Para a esquerda fui, contigo. Coração soube escolher” (“São Marcos”)

quinta-feira, 17 de maio de 2012



Para não induzir ao erro de supor que estive horas no espaço físico de um museu, à frente do quadro acima, sublinho que estive a olhar para ele apenas depois de aceder ao site do Instituto Itaú Cultural, e sempre através do ecrã/tela do computador. Fiz a consulta ao site no dia 28 de janeiro deste ano.

Porque só me vali do computador e ele tem seus limites – isso para não falar nos meus limites -, saliento que as cores, no quadro que o meu computador maltratado me dá, podem não corresponder ao quadro original, pois a internet permite e ao mesmo tempo não permite conhecer.

A propósito de acertos e erros, esclareço que as medidas do quadro são 85 x 79 cm. É quase a forma de um quadrado. A informação está disponível na internet, restando a quem tem boa noção de espaço dimensionar a obra.

Escrevo sobre este quadro porque nunca precisei refletir demais sobre as perspectivas de uma amizade, porque me interessa o que esse tema suscita em mim, hoje, e porque não me agrada de todo o resultado que vejo nele; mas ficava contente em ler comentários sobre leituras diferentes, principalmente por causa da lacuna entre o palpável e o virtual do quadro em questão.

O título dele é “Doppelbidnis Margarete und Zoe [Duas amigas]” e o pintor, Lasar Segall. Está assinado no canto superior esquerdo. A data compreende o intervalo entre os anos de 1917 e 1918.

Quadro com quase cem anos de existência, está numa coleção particular. Desde quando? Não sei.

Também não sei de quem é a coleção. A quem estará confiado (e confinado) o quadro? Fico a imaginá-lo numa sala muito solene, pregado numa parede.

Minhas dúvidas, no entanto, repousam na zona das intenções sob controle, não preciso que sejam respondidas.

Vamos, então, às ideias que brotaram da apreciação do quadro.

O título evoca a amizade. Hoje, como já falei de raspão, esse tema tem um quê de árido, mais do que de romântico ou de fluido.

E por que, então? Que fazem duas amigas que possam me causar estranheza?

Eu poderia ir por vários caminhos: a amizade entre adolescentes, a amizade entre os homens e as mulheres, a amizade que dura toda a vida adulta etc, mas é melhor limitar o raciocínio ao que o quadro oferece: duas amigas jovens.

Não sabemos desde quando são amigas. A amizade terá passado fases boas e fases más? Provavelmente.

Na pose em que as vemos, por obra de Lasar Segall, olham para direções diferentes. Seus olhares não se cruzam.

O corpo de uma delas tem uma torção esquisita. Para estar sentada ao lado da amiga é que ela assim está? Ou ela não aprecia contato físico, e por isso chega o corpo um pouco para a esquerda?

Pode ser que uma delas estivesse muito mais (as)sentada do que a outra… a de cabelos e casaco (ou será, antes, uma camisa?) de cor quente parece prestes a levantar, enquanto a de olhar pacífico não procura fazer movimento.

Esses olhares e essas poses me levam a pensar na sintonia.

Pode ser que entre as duas moças tenha faltado essa tal de sintonia.

Se sintonia tem que ver com identidade, a falta de sintonia acontece muitas vezes entre nós e as pessoas de que gostamos, as pessoas de quem podemos dizer que fazem parte do nosso círculo.

Lasar Segall pintou esse quadro há quase cem anos. Hoje, somos muito descuidados nas aproximações e na manutenção dos contatos.

Octavio Paz escreveu sobre perda de sentido, estudada por ele no que toca o universo da poesia. Segundo ele, desde há algumas décadas enfrentamos uma fase de percepções tão dissociadas umas das outras, que o sentido que determinado poeta tinha posto num poema, por exemplo, perde o estatuto de verdade para quem o lê. Não damos conta de saber que as imagens têm o poder de representar, não encontramos correspondência entre as nossas imagens de eleição e as dos outros. De pessoa a pessoa, enfim, um elo está partido, pois não existe diálogo.

Sem diálogo, sem troca de representações, sem sintonia, matamos tempo a conviver sem conviver, como duas amigas sentadas bem próximas, mas fechadas em mundos particulares. Podemos até gostar de nomear a outra ao relembrarmos os amigos, mas entre a intenção boa e a realização, que distância vai!

O que Lasar Segall pintou não tem confluência de olhares. As personagens não esboçam gesto típico de conversa; ficássemos então com a hipótese de trocarem mensagens pelo olhar, estávamos agora frustrados na tentativa de entendê-las.

Pode ser exagero da minha parte, mas o que os corpos conversam não denota esforço. No bom sentido do esforço, não. Não ficamos com pistas de que se entendem bem dentro de um regime de poucas palavras, nem temos como afirmar que só estão alheias uma da outra porque acabaram de discutir. Elas também não conversam conosco.

Uma repousa, a outra ameaça sair. Mas não sabemos o que faz delas amigas.

Estarão de mãos dadas? Às vezes olho e me parece que sim.

Seria uma forma de troca, troca de calor, toque, um sinal de aceitação, de harmonia.

Mas e as cores? E a luz?

Passou-me pela cabeça que uma tinha sido metida numa tina com tinta amarela e a outra tinha apanhado um mormaço terrível. Num dia quente e (h)úmido, a mais inquieta saiu à rua sem chapéu; a outra, adoentada ou insaciável bebedora de chá, viu-se tingida de amarelo depois de muito chazinho de camomila e assim ficou, imóvel!

Não sei qual a associação que me assalta, mas atribuo a falta de sintonia também à diferença de cores, como se nem nisso elas pudessem concordar.

Têm saias muito rodadas, ambas prenderam o cabelo na altura da nuca, consentiram em posar para o artista, dizem-se amigas (ou o pintor assim o diz a nós), mas não querem dar nas vistas…

Antecipam um desencontro muito atual, muito corriqueiro. Um silêncio que outras telas não têm, mesmo que sejam mais apelativas aos olhos que aos ouvidos. Parecem dizer:

- Não temos do que rir. Nada no campo de visão captura nosso olhar. Não nos deixamos influenciar uma pela outra. A amizade? Ah, ela resiste a tudo.

Toda esta minha divagação, no entanto, passou longe do que está de verdade no interior, sem ter que dar mostras de que lá está.

Vejo fotografias minhas com uma e outra amiga e sei que não fazíamos esforço para caracterizar a amizade. Ainda mais eu, que custo a descontrair.

Mas na pintura, na premeditação a que o pintor tem direito, na tentativa de representação, não seria legítimo  ver a amizade caracterizada? Seja na altivez dos jovens, seja na precipitação dos jovens, essa amizade podia transparecer.

Lasar Segall tinha pouco menos de 30 anos quando fez o quadro. Era já homem viajado e as enciclopédias de arte assinalam justamente o ano de 1917, ano em que o quadro “Doppelbidnis Margarete und Zoe [Duas amigas]” começou a ser criado, como um ano de muito exercício expressionista da parte dele.

Se falava mais alto o desejo de subjetividade, em vez de uma opção pela documentação, então realmente minha ideia de amizade está incompleta.

A concepção de Lasar Segall e a minha concepção pouca intersecção fazem. Fica de todo modo a ressalva: nunca tentei expressar essa minha concepção, aliás mutante, na linguagem da pintura.

A minha visão de juventude, a minha visão do ato de retratar o etéreo, a minha necessidade de brincadeira, e ao mesmo tempo de provas quase físicas, não acha conforto no quadro dele.

Saio indecisa da decifração, da posição de quem olha.

Minha passagem pela escola, na quente cidade de Piracicaba, deu-me amigas muito diferentes de mim,  graças a Deus, várias delas espalhafatosas.

Na faculdade, há uma amiga impagável, nesse gênero pastelão. Demos aula em dupla, durante um tempo, era a primeira experiência formal de uma e de outra como professora, e eu respondi um sonoro e convicto "sim", a uma pergunta feita em voz alta por um aluno, ao passo em que ela respondeu outro sonoro e convicto "não" para a mesma pergunta.

Como adulta, que quero eu das amizades?

Notícia regular de uma amizade amorosa, de fé, que atravessa continentes. Se hoje acredito mais, é muito por causa de uma amizade, de uma intimidade que eu consinto, de um reforço daquilo que considero virtudes minhas - e dela!

Se fosse eu a pintar-nos, a mim e a ela?

Nem pensar, a artista não sou eu...