Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Rápido e rasteiro - poema 14

Se fosse apenas a oriente...

Poema com um quê de português

sábado, 21 de janeiro de 2012

Ao olho do furacão




Memórias de um Sargento de Milícias, O Cortiço, Vidas Secas e  Capitães da Areia estão presentes na lista das leituras obrigatórias de dois exames brasileiros muito concorridos, um que permite o ingresso num curso da USP e outro que dá acesso à UNICAMP.

USP e UNICAMP são universidades públicas, têm que fazer uma triagem, pois muita gente sonha estudar num curso oferecido por uma e por outra e não cabe toda a gente lá dentro, como facilmente se compreende.

Exigir algumas leituras dos candidatos é justo, penso eu. Sinceramente não me lembro dos moldes em que os exames são apresentados aos candidatos, mas se eles entenderem que vale a pena concorrer e que vale a pena conhecer literatura, moldes serão apenas moldes. Entre mortos e feridos, salvam-se todos.

A literatura brasileira tem autores e obras muito bons, e é importante conhecê-los; é preciso, de qualquer modo, ler bem vários tipos de texto, ler com atenção, tendo em mente a relação entre um livro e outro, a relação entre um livro e seu autor, entre um livro e sua época, entre um livro e seu mercado editorial. Para mim,  posicionar esses atores é mais importante do que dominar jogos que têm mil fases. Ok, são universos muito diferentes, mas quem tem adolescente por perto sabe quantas horas um deles pode estar à frente do computador ou do aparelho de televisão para ultrapassar fases. É isso? Não gosto de jogos de computador, estou, então, supondo. Não sei bem qual o prazer que eles dão. Tenho a certeza, no entanto, de que a literatura proporciona momentos excelentes. Eles nos elevam. Podem não ser tão leves quanto os dos jogos, mas saímos enriquecidos depois deles. 

Aos livros.


Memórias de um Sargento de Milícias é divertido, narra as confusões em que o protagonista se ia metendo e com que espírito ele se safava. Nós, enquanto lemos e rimos, ficamos a conhecer a cidade dele, uma cidade nossa retratada numa fase especial, de muitas mudanças urbanas. 

O Cortiço é muito mais pesado e mais rígido. Mas as cidades grandes, no Brasil, tiveram e têm habitações coletivas, degradadas, complexas como a do livro. Se um escritor deu-se ao trabalho de pôr no papel uma descrição das personagens que passavam por aquele ambiente, vamos ler!


Vidas Secas é um livro simples e bom, tão bom. Tem o atrativo da ordem dos capítulos, que por si só dá notícia das desigualdades brasileiras: aconteça o que acontecer, leia-se quase como quiser este livro, Fabiano e família não escapam da pobreza, não escapam da ignorância, não escapam. Eles têm a cachorrinha, a que chamam Baleia. Raramente vão à cidade. Fazem contas sem a certeza de saber fazer e sem confiar em quem diz que sabe. E não tem voz nem palavras pra tudo, Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais novo e o menino mais velho não têm!


O que dizer dos Capitães da Areia? Li o livro pela primeira vez quando era adolescente, por isso e por causa da qualidade dele, ainda bem, guardo uma impressão muito emocional do enredo e das personagens. Jorge Amado puxou pelo leitor, o leitor adolescente e não só, ao fazer personagens tão puras e tão machucadas, ao mesmo tempo, empurradas para situações que alguns adultos não chegam a enfrentar. Foi buscar essas histórias na década de 30 do século passado, pôs como cenário um trapiche, narrou brigas de rua, assaltos, lembrou de pessoas que acolhem, de meninos com talentos desperdiçados e mais, muito mais. A extrapolação pode ser abusiva, disparatada, mas me veio à cabeça outro livro que têm os adolescentes no olho do furacão: O Senhor das Moscas, de William Golding. A leitura também me deixou com os nervos à flor da pele. Eles não estiveram sempre à margem, foram parar à margem por acidente, mas neles bateu o instinto selvagem de ataque e de defesa que regia a vida dos dos capitães da areia. 


Por que, afinal, custa tanto ao brasileiro ler a literatura produzida com qualidade por brasileiros? Ao olho do furacão só vai quem quer?



terça-feira, 17 de janeiro de 2012

"Caravan"


A música que empresta nome a esse post foi composta na década de 30 do século passado, tanto quanto eu sei.

Já ouvi algumas versões, umas cantadas, outras instrumentais, mas fico sempre com Nat King Cole.

Às vezes, naquela pose elegante em que eu o via no poster de moldura branca, oferecido à minha mãe por uma das filhas, ele parecia ver-me também. Sempre convidativo e sempre a sorrir, a sorrir de lado, com discrição.

Assim sorrindo me fazia voltar para "Caravan", voltar também aos boleros ("Quizás, quizás, quizás", "Ansiedad", "Perfidia"), que até durante uma aula eu já pus a tocar - pois havia motivo, claro.

Mas voltando à música da década de 30, "Caravan", quão curiosa ela me deixa.

Faz fumo/fumaça quando a ouço e até o sorriso de Nat King Cole perde-se em bruma, ficando voz e ar de mistério.

E tudo porque, além da atmosfera exótica que ela evoca, gosto de lembrar que a música de certa forma está na poesia, porque a caravana estava no imaginário de um grande poeta.

Em 1929, Camilo Pessanha, já falecido, teria seu poema "Branco e Vermelho" publicado num jornal, e lá estava a imagem da caravana:

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.


Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso…
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso…
Que delícia sem fim!


Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)


Na areia imensa e plana,
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana…
Da insigne dor humana…
A inútil dor humana!


O estrangeiro, o ermo, as gradações que parecem alongar-se num movimento, como a linha do horizonte, o ritmo marcado em instrumentos de sopro e de percussão, que capturam: música e poema abriam as cortinas de uma imagem muito interessante para mim e para outros ocidentais.

Para Pessanha, talvez hipnotizado em Macau, a caravana passava - como na frente dos olhos do Chico passou a banda e passou o casal encantado a dançar valsinha, até a praça?

Pessanha passava da dor à delícia, do branco ao vermelho, da luz à desistência de ver e de sentir.

A caravana passava enquanto ele escrevia cartas?

A caravana terá passado num ecrã/tela?

Terá estado implícita nos objetos de arte que ele colecionava?

Houve época, segundo facilmente se depreende desses exemplos de música e de poesia, em que a caravana levava as pessoas a fantasiarem, a ansiarem por coisas mais etéreas, quiçá mais promissoras. 

Particularmente gosto do Oriente meu conhecido. Do que chegou a mim dentro de histórias fantásticas e verossímeis como as d' As Mil e uma noites. Do que conheci pela prosa, poesia e cinema. Lembro em especial um livro de contos que nunca mais tive o prazer de encontrar, e cujo título era O astrolábio do mar. Lembro, ainda, de um livro surpreendente chamado O menino de areia. O autor do primeiro é o tunisino/tunisiano Mohamad Aziza, pseudônimo Chems Nadir; o do segundo, o marroquino Tahar Ben Jelloun. 

Gosto do Oriente que se somou ao meu Oriente "conhecido" (nunca estive em solo do hemisfério oriental) pela palavra de um oriental de raciocínio privilegiado, Salman Rushdie. 

Há mais ou menos quatro anos, quando mergulhei no que o escritor indiano educado em/na Inglaterra foi capaz de ler na célebre história da menina Dorothy, do Texas, quase cai para trás. Não era propriamente o enredo que me falava do Oriente, uma vez que ele fez sobressaírem detalhes de um clássico bem ocidental (curiosamente, também ele da década de 30 do século passado!), O feiticeiro de Oz/O mágico de Oz, mas era a mente do oriental a brilhar, como narrador e como crítico da sociedade que eu conheço e às vezes não quero acordar para ver.

Pois bem, gosto de toda essa miscelânea que é o meu Oriente e que ajuda a escapar e a desejar um Ocidente - e dois hemisférios - melhor(es).

Gosto de pensar na caravana como refúgio, que deve ter sido.

Gosto de pensar na qualidade do imaginário que é construído a partir de contribuições menos vulgares.

Gosto que, na minha adolescência, tenha existido um Raul Seixas a plantar tantas e tantas pistas para um imaginário menos frouxo, menos morto, menos oco. Um Raul com a mesma capacidade de atrair o olhar que Nat King Cole tinha. Nem um nem outro tem beleza física, se penso nos padrões mais batidos e esbatidos. Mas ambos foram fotografados e deram em resultados a meu ver muito muito bons. 

Não era a caravana, não era a banda, não era o casal a valsar, não era o leilão dos sapatinhos de rubi, mas era o disco-voador que eu ouvia em Raul, para além de tantas outras mensagens.

De todas as coisas amalucadas ditas com simplicidade pelo Raul, vale sempre repetir o apelo, emocionado e ao mesmo tempo impraticável, daqueles de fazer sorrir usando só o canto dos lábios:

"Ô Ô seu moço, do disco voador, me leve com você, pra onde você for
Ô Ô seu moço, mas não me deixe aqui, enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí".




sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Sensações da avenida

Quando o combustível acaba



Quando o combustível acaba, é altura de reabastecer.

É simples assim.

Outros raciocínios, que assombram antes do começo, são bem-vindos em outra altura:

Onde estão os tanques cheios de combustível, que eu não os vejo?

Quais caminhos poderei percorrer, com o tanque novamente cheio, eu que já me senti tão incapaz de discernir?

É preciso respirar fundo e dizer que há uma providência mais urgente do que limpar a casa, do que comprar bananas, do que deitar à hora prevista.

É preciso começar, antes de desvalorizar a liberdade que vem pela frente.

"Liberdade! liberdade! abre as asas sobre nós"


Olha que eu já cantei esse samba...



segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Erro de casting e alegria

Veio de um lado. Veio do outro.

Ao longo da última semana de 2011, ouvi mais de uma vez a explicação que, aqui e agora, repasso.

Primeiro, foi uma amiga, muito amiga, que tem fé suficiente para ela e para mim.

Dizia que o autor de O Senhor dos Anéis, Tolkien, tem um filho e fez para ele e para a nora um discurso muito inspirado, por ocasião do casamento deles dois.

Resumidamente, o que ele pretendia era salientar que casamentos são perfeitos, na imperfeição do ser humano. E que mulheres e homens têm papéis, às vezes bem menos românticos do que supomos.

Segundo ele (ou o que alguns supõem ser o discurso dele), durante um casamento o que importa é construir. É aceitar o outro, com alegria, como se o outro fosse um náufrago que cabe apoiar. Porque nós não somos movidos por amores impossíveis, somos sobreviventes, estamos desejosos. Há de vingar em nós um bem executado projeto, um projeto de compromisso, de doação, de troca.

Para essa construção, o que conta é alegria. 

Amor pronto, numa forma intocável, advém de outra fonte, é muito mais o divino em nossa vida do que os encontros que vamos tendo.


Na televisão, no dia 30 de dezembro, ouvi um senhor a falar nas uniões com o mesmo intuito e argumentos muito semelhantes aos de Tolkien.

Era um programa da televisão aberta portuguesa, acerca de religião e de religiosidade, chamado "A Fé dos Homens". Não entendo bem a grade de programação da TV portuguesa. Tem dia de desenho animado, que aqui dizem "bonecos", tem dia em que, no horário dos bonecos, simplesmente começa outra coisa, sem aviso prévio... Enfim, esta é outra conversa que me interessa, mas que não vou misturar agora. 

O convidado a que me refiro, o do programa religioso, dizia que muitas vezes ao vermos um casal, pensamos num erro de casting. Mas não se trata propriamente disso, de um erro. Se tivermos alegria para abastecer a casa, continuadamente, aquilo que parecia um equívoco torna-se a história pessoal de que fomos capazes, conscientes das nossas limitações e da alegria que devemos ter e oferecer. 

De novo a alegria, de novo a sabedoria de não pretender saber mais do que é possível num dado momento e, assim, viver com aquela doce responsabilidade, a de dar um contorno bonito a um papel que pensamos não ter escolhido com acerto. 

A mim atormentava a ideia de não estar no enredo certo. Tinha um sonho, angustiante, de que um dia saberia qual era o resultado final, antes de o resultado chegar. Como se visse um filme, o filme da minha vida. Eu assistia, corrigindo, tal qual realizadora/cineasta. E isso para não ter de lamentar (como se fosse obrigatório lamentar, acabar mal, acabar pior do que em outras versões da minha vida!), no final, as escolhas erradas... 

Como diz o texto de Tolkien para o casamento do filho, mesmo que no fim pareça que não escolhemos o melhor parceiro possível, ainda assim teremos agido bem, se tivermos agido com alegria e atentos aos compromissos. 

O outro não é parceiro ideal em qualquer altura da nossa vida e a vida não é filme que passa dentro de nós,  ao apertarmos um botão. Viver ou sobreviver ultrapassa esses sonhos e exige de nós mais dedicação e mais bom humor do que parece.



Sendo esse o pedido, alegria e esforço continuado - e lembrando que há os imponderáveis - custa mesmo tanto ir em frente?!