Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quarta-feira, 27 de junho de 2012

O caminho, a estrada


O português cisma mais do que o brasileiro, quando o assunto é separar em categorias.
Para ele, “estrada” é a mesma coisa que “rua” para o brasileiro, mas “auto-estrada” é diferente, é a “estrada” ou a “rodovia” do brasileiro. As palavras são semelhantes, uma está contida na outra; já o que elas indicam, nem tanto.
A “via rápida” é outra história, nem estrada nem auto-estrada, mas mais ou menos uma avenida movimentada, que deve desembocar nalguma auto-estrada.
Também tem “avenida” e tem “travessa”, esta última aparece gravada na placa pregada à parede de uma casa de esquina ou na de um banco etc; se fosse no Brasil, “travessa” só seria ouvida durante a explicação de um trajeto, por exemplo, e sempre para aludir ao desenho que uma rua forma com a outra.
Um “caminho” pode ser poético, em Portugal, como os “Caminhos do Romântico”, percursos temáticos pela cidade do Porto, aos quais os turistas supostamente devem ser mais sensíveis.
“Lugar” eu nem sei empregar… é um ponto no mapa, pronto! Tem muito “Lugar de baixo”, em Portugal, tem ainda “Lugar da Chentuada”, que é uma morada ou um endereço. “Lugar” é um pouco mais impreciso do que “terra”, palavra que aqui também se utiliza para indicar uma origem, uma procedência nada cosmopolita, aquele pequeno espaço de onde fulano veio e sobre o qual falam com certo embaraço.
“Freguesia” é o bairro.
“Sítio” é termo português que eu penso já ser mais familiar para o brasileiro, por causa da nomenclatura relativa à Internet e até por causa do uso genérico que aqui tem; seria, grosso modo, o nosso “lugar” - em nada parecido com o tipo de propriedade agrícola que “sítio” designa no Brasil.
E tudo isso, é claro, eu vou contando na minha verve paulistana que, para muita gente, quer dizer ela própria quase nada, já que em São Paulo cortamos as frases antes de elas estarem desenvolvidas e cortamos as palavras, na pressa de pronunciá-las. Quem quer que esteja em trânsito, há-de chegar ao seu destino, naquele mega-aglomerado que é ao mesmo tempo uma cidade caótica e bem sinalizada. Ninguém liga muito ao como fala, em São Paulo, mas todo mundo se comunica para não perder a viagem, literalmente.
Enfim, aqui em Portugal dá-se o inverso, o território é falado em linguagem específica, bem aplicada, que no fundo pode ser o mínimo que se exige em termos de organização. No entanto há uma excepção engraçada, pois em qualquer auto-estrada, os portugueses apelam para uma sinalização tão característica quanto “Outras direcções”. Assim não dá! O estrangeiro em viagem por este pequeno país só se desenrasca se tiver ou imaginação ou faro! Quantas direcções caberão no “Outras direcções”, se o país é desconhecido de quem se orienta pelas placas?
E bem neste paradeiro, pensado com uma lógica no mais das vezes clara, para que as dúvidas espaciais não se instalem, eu vim parar sem a paranóia dos mapas, sem o medo de comer poeira, mas quase completamente ausente de direcção interna.
Vim disposta a amar cada centímetro dessa minha outra casa, sem saber como uma pessoa desenvolve a capacidade de se inventar e de amar a si mesma, sobretudo, durante a travessia.
As referências que eu trazia, são úteis ainda hoje?
Penso num provérbio árabe que me surpreendeu por muito tempo: “Louco é o viajante que quer construir uma casa no caminho”.  
Penso em Carlos Drummond de Andrade, com o arquiconhecido poema “No meio do caminho tinha uma pedra”.
Penso nos Novos Baianos, grupo musical extinto e entretanto fresco (na memória), com seu refrão irreverente, “Caia na estrada e perigas ver”. Em cada parte da canção eles o completavam com uma realidade bem mais rasa do que os sonhos, só para nos provocar. A título de ilustração, lembro o que eles cantavam: “Caia na estrada e perigas ver: a mulher que andou na linha, o trem matou”.
É justamente o avesso da previsibilidade desejada pelo português. Segundo os Novos Baianos, a gente deve rir da mulher que deseja andar na linha, porque o fim dela é duro e a linha do trem, essa continua, essa é de ferro.
Eu rio do pragmatismo às avessas dos artistas baianos, que só nos querem pôr em movimento, sem ideias pré-concebidas.
Finalmente, penso no Lô Borges, talvez pouco conhecido em Portugal:

Com sol e chuva você sonhava/
Que ia ser melhor depois/
Você queria ser o grande herói das estradas/ 
Tudo que você queria ser/
Sei um segredo: você tem medo/
Só pensa agora em voltar/
Não fala mais na bota e do anel de Zapata/
Tudo que você devia ser/ sem medo”

Entre objectividade e acidentes de percurso, que rota seguir?
Existe mesmo uma encruzilhada, um caminho à esquerda e outro à direita na vida?
Será que o provérbio árabe nos ensina que parar e construir a casa é um mero acidente?
Uma pessoa parte para o desconhecido, encanta-se com as novas paisagens, interrompe a caminhada e… pronto, está a abrir mão do essencial, do próprio caminhar, da própria busca?
Uma pessoa parte, topa numa pedra, vem um pasmo interior e ela fica a lembrar desse pasmo infinitamente, por mais vulgares que as pedras no caminho sejam?
Uma pessoa observa os tipos na estrada e ri? Ou não os observa, pois assim concentra forças para continuar a escolher seus percursos com liberdade?
Uma pessoa se aventura, faz projectos, desbrava e as pressões falam tão alto que ela quase assume que não pode ser: sonhar e conquistar estão a dar-lhe cabo da vida!
Que sementes dão cabo da nossa cabeça?
Qual a lógica que dá melhor forma à vida e qual a deforma?
Se penso na literatura, fecho com Guimarães Rosa, que é sempre bom remate, ao colocar pensamento dentro de pensamento, história dentro de história:

“Chegando na encruzilhada, eu tive de resolver. Para a esquerda fui, contigo. Coração soube escolher” (“São Marcos”)