Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


sábado, 21 de julho de 2012

A criança que se faz ver

Por duas vezes, nesta semana, vi crianças que me deram alento.

Primeiro, numa loja popular.

Distraída, quase perdida, reencontrei uma senhora um pouco mais velha do que eu, muito elegante, contida para falar como raramente se vê.

Estivemos bastante tempo em pé, perto das piscinas, das bóias e das braçadeiras à venda.

Ouvi narrativas dela sobre a neta, sobre a mãe – outra senhora que eu conheço e admiro -, sobre escola etc, sempre tentando eu mesma ser contida na minha forma de responder e de dosear, por saber que as minhas impressões mais rápidas geralmente estão cheias de ideias duras, e é preciso ter cuidado com isso.

E de repente eu tive a certeza, enquanto a ouvia, de que ali dentro, mais magrinha do que aquela mulher magra, estava uma menina contente. Contente com o que contava, contente em contar, a balançar uma das pernas, a perna assim meio suspensa no ar, a tocar o chão para em seguida subir para o ar de novo. Isso mesmo, a narrativa tinha o ritmo daquela perna que ia e vinha.



Que graça de visão.

Estar em paz com papéis assumidos na mais pura pressão em que vivemos é uma bênção, deve ser como ter a figurinha de criança a brincar, solta em você, no seu corpo gasto de adulto.

Saí de lá eu própria mais apaziguada.

E hoje, então, foi a vez do menino.

Um encontro ao mesmo tempo intelectual e político, não no sentido mais amplo do termo, mas político, sim, porque havia a intenção de promover um debate (sobre arte, sobre a assunção de papéis em família, em sociedade, na criação artística etc).

Eu que estudei cartas femininas, no mestrado e depois, no doutoramento, ia acompanhando as ideias e ia tendo meus flashes, mas nada que eu desejasse dizer em voz alta.

Ou cansaço ou timidez, estive mais concentrada naquilo que era a apresentação de um livro de uma conhecida minha, sem palpitar.

Vi que no espaço agradável da reunião, um homem da minha idade se apresentara vestido de uma maneira tão pouco vulgar para um português, que até admirava.

Ele tinha uns calções muito parecidos com esses que a gente coloca para ir jogar bola: tecido sintético, com um pouco de brilho, larguinho, até o joelho, sem costura ou detalhe que chame atenção.

A parte de cima? Uma camisa quadriculada, da cor já não me lembro.

E um par de ténis/sapatilha preta, com meias puxadas pra cima, sem fricote, sem moda.

Pensei, então: ai que vontade de perguntar se ele vai jogar futebol daqui a pouco!

Mas naquele contexto, não. Não tem piada pôr alguém na berlinda sem mais nem menos. Esse tipo de intimidade não faz sentido aqui.

Enfim, ele me pareceu tão contente e tão risonho, que lembrava de verdade os meninos em clima de brincadeira, de partida, de descontracção.

E eu o conheço. É um tipo bem inteligente, culto, incrivelmente à vontade com as opiniões que expõe em voz alta.

Como consegue? Não vejo um raio de tensão, sequer, quando ele afirma ou quando ouve alguém que discorda.

É o menino, está visto!

Dentro dele está uma fagulha daquela criança que se diverte e, por isso, namora com as ideias complicadas, provoca, com ideias, quem o ouve, sem ferir, sem competir, sem chatear a sério.

Meu palpite?

Agora quero dizer: onde andará minha Betininha: fofa, pequena, peralta, que fazia discurso para as amigas da mãe, que queria sempre prolongar a corrida e o pega-pega, que era capaz de comer fatias e mais fatias de bolo, até a barriga doer? Que vibrava quando começa em algum lugar uma música de que ela gostava... e que dançava, e que inventava.

É atrás dessa figurinha que eu tenho que ir.

Às vezes um ângulo do meu filho me mostra uma pontinha daquela vivacidade, daquela energia, e eu sinto crescer a vontade de cuidar melhor dela, cuidando de mim e, sem dúvida, cuidando dele também.

Talvez as coisas se processem melhor em outra ordem: estando eu aborrecida, pergunto-me o que ela desejaria, o que traria a calma até ela de novo. Seria, portanto, cuidar dela para cuidar de mim e, bem cuidada, cuidar do meu menino.

Desses assuntos de ternura entende o Milton Nascimento, que cantou e canta:

Há um menino, há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão