Por
duas vezes, nesta semana, vi crianças que me deram alento.
Primeiro,
numa loja popular.
Distraída,
quase perdida, reencontrei uma senhora um pouco mais velha do que eu, muito
elegante, contida para falar como raramente se vê.
Estivemos
bastante tempo em pé, perto das piscinas, das bóias e das braçadeiras à venda.
Ouvi
narrativas dela sobre a neta, sobre a mãe – outra senhora que eu conheço e admiro -, sobre escola
etc, sempre tentando eu mesma ser contida na minha forma de responder e de
dosear, por saber que as minhas impressões mais rápidas geralmente estão cheias de ideias duras,
e é preciso ter cuidado com isso.
E
de repente eu tive a certeza, enquanto a ouvia, de que ali dentro, mais
magrinha do que aquela mulher magra, estava uma menina contente. Contente com o
que contava, contente em contar, a balançar uma das pernas, a perna assim meio suspensa
no ar, a tocar o chão para em seguida subir para o ar de novo. Isso mesmo, a
narrativa tinha o ritmo daquela perna que ia e vinha.
Que
graça de visão.
Estar
em paz com papéis assumidos na mais pura pressão em que vivemos é uma bênção, deve
ser como ter a figurinha de criança a brincar, solta em você, no seu corpo
gasto de adulto.
Saí
de lá eu própria mais apaziguada.
E
hoje, então, foi a vez do menino.
Um
encontro ao mesmo tempo intelectual e político, não no sentido mais amplo do
termo, mas político, sim, porque havia a intenção de promover um debate (sobre arte,
sobre a assunção de papéis em família, em sociedade, na criação artística etc).
Eu
que estudei cartas femininas, no mestrado e depois, no doutoramento, ia
acompanhando as ideias e ia tendo meus flashes, mas nada que eu desejasse
dizer em voz alta.
Ou
cansaço ou timidez, estive mais concentrada naquilo que era a apresentação de
um livro de uma conhecida minha, sem palpitar.
Vi
que no espaço agradável da reunião, um homem da minha idade se apresentara
vestido de uma maneira tão pouco vulgar para um português, que até
admirava.
Ele
tinha uns calções muito parecidos com esses que a gente coloca para ir jogar bola: tecido sintético,
com um pouco de brilho, larguinho, até o joelho, sem costura ou detalhe que chame atenção.
A
parte de cima? Uma camisa quadriculada, da cor já não me lembro.
E
um par de ténis/sapatilha preta, com meias puxadas pra cima, sem fricote, sem moda.
Pensei,
então: ai que vontade de perguntar se ele vai jogar futebol daqui a pouco!
Mas
naquele contexto, não. Não tem piada pôr alguém na berlinda sem mais nem menos.
Esse tipo de intimidade não faz sentido aqui.
Enfim,
ele me pareceu tão contente e tão risonho, que lembrava de verdade os meninos
em clima de brincadeira, de partida, de descontracção.
E
eu o conheço. É um tipo bem inteligente, culto, incrivelmente à vontade com
as opiniões que expõe em voz alta.
Como
consegue? Não vejo um raio de tensão, sequer, quando ele afirma ou quando ouve alguém que discorda.
É
o menino, está visto!
Dentro
dele está uma fagulha daquela criança que se diverte e, por isso, namora com as
ideias complicadas, provoca, com ideias, quem o ouve, sem ferir, sem competir,
sem chatear a sério.
Meu
palpite?
Agora
quero dizer: onde andará minha Betininha: fofa, pequena, peralta, que fazia
discurso para as amigas da mãe, que queria sempre prolongar a corrida e o
pega-pega, que era capaz de comer fatias e mais fatias de bolo, até a barriga
doer? Que vibrava quando começa em algum lugar uma música de que ela gostava... e que dançava, e que inventava.
É
atrás dessa figurinha que eu tenho que ir.
Às
vezes um ângulo do meu filho me mostra uma pontinha daquela vivacidade, daquela
energia, e eu sinto crescer a vontade de cuidar melhor dela, cuidando de mim e,
sem dúvida, cuidando dele também.
Talvez as coisas se processem melhor em outra ordem: estando eu aborrecida, pergunto-me o que ela desejaria, o que traria a calma até ela de novo. Seria, portanto, cuidar dela para cuidar de mim e, bem cuidada, cuidar do meu menino.
Desses
assuntos de ternura entende o Milton Nascimento, que cantou e canta:
Há um menino, há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão
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