Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

"Caravan"


A música que empresta nome a esse post foi composta na década de 30 do século passado, tanto quanto eu sei.

Já ouvi algumas versões, umas cantadas, outras instrumentais, mas fico sempre com Nat King Cole.

Às vezes, naquela pose elegante em que eu o via no poster de moldura branca, oferecido à minha mãe por uma das filhas, ele parecia ver-me também. Sempre convidativo e sempre a sorrir, a sorrir de lado, com discrição.

Assim sorrindo me fazia voltar para "Caravan", voltar também aos boleros ("Quizás, quizás, quizás", "Ansiedad", "Perfidia"), que até durante uma aula eu já pus a tocar - pois havia motivo, claro.

Mas voltando à música da década de 30, "Caravan", quão curiosa ela me deixa.

Faz fumo/fumaça quando a ouço e até o sorriso de Nat King Cole perde-se em bruma, ficando voz e ar de mistério.

E tudo porque, além da atmosfera exótica que ela evoca, gosto de lembrar que a música de certa forma está na poesia, porque a caravana estava no imaginário de um grande poeta.

Em 1929, Camilo Pessanha, já falecido, teria seu poema "Branco e Vermelho" publicado num jornal, e lá estava a imagem da caravana:

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.


Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso…
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso…
Que delícia sem fim!


Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)


Na areia imensa e plana,
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana…
Da insigne dor humana…
A inútil dor humana!


O estrangeiro, o ermo, as gradações que parecem alongar-se num movimento, como a linha do horizonte, o ritmo marcado em instrumentos de sopro e de percussão, que capturam: música e poema abriam as cortinas de uma imagem muito interessante para mim e para outros ocidentais.

Para Pessanha, talvez hipnotizado em Macau, a caravana passava - como na frente dos olhos do Chico passou a banda e passou o casal encantado a dançar valsinha, até a praça?

Pessanha passava da dor à delícia, do branco ao vermelho, da luz à desistência de ver e de sentir.

A caravana passava enquanto ele escrevia cartas?

A caravana terá passado num ecrã/tela?

Terá estado implícita nos objetos de arte que ele colecionava?

Houve época, segundo facilmente se depreende desses exemplos de música e de poesia, em que a caravana levava as pessoas a fantasiarem, a ansiarem por coisas mais etéreas, quiçá mais promissoras. 

Particularmente gosto do Oriente meu conhecido. Do que chegou a mim dentro de histórias fantásticas e verossímeis como as d' As Mil e uma noites. Do que conheci pela prosa, poesia e cinema. Lembro em especial um livro de contos que nunca mais tive o prazer de encontrar, e cujo título era O astrolábio do mar. Lembro, ainda, de um livro surpreendente chamado O menino de areia. O autor do primeiro é o tunisino/tunisiano Mohamad Aziza, pseudônimo Chems Nadir; o do segundo, o marroquino Tahar Ben Jelloun. 

Gosto do Oriente que se somou ao meu Oriente "conhecido" (nunca estive em solo do hemisfério oriental) pela palavra de um oriental de raciocínio privilegiado, Salman Rushdie. 

Há mais ou menos quatro anos, quando mergulhei no que o escritor indiano educado em/na Inglaterra foi capaz de ler na célebre história da menina Dorothy, do Texas, quase cai para trás. Não era propriamente o enredo que me falava do Oriente, uma vez que ele fez sobressaírem detalhes de um clássico bem ocidental (curiosamente, também ele da década de 30 do século passado!), O feiticeiro de Oz/O mágico de Oz, mas era a mente do oriental a brilhar, como narrador e como crítico da sociedade que eu conheço e às vezes não quero acordar para ver.

Pois bem, gosto de toda essa miscelânea que é o meu Oriente e que ajuda a escapar e a desejar um Ocidente - e dois hemisférios - melhor(es).

Gosto de pensar na caravana como refúgio, que deve ter sido.

Gosto de pensar na qualidade do imaginário que é construído a partir de contribuições menos vulgares.

Gosto que, na minha adolescência, tenha existido um Raul Seixas a plantar tantas e tantas pistas para um imaginário menos frouxo, menos morto, menos oco. Um Raul com a mesma capacidade de atrair o olhar que Nat King Cole tinha. Nem um nem outro tem beleza física, se penso nos padrões mais batidos e esbatidos. Mas ambos foram fotografados e deram em resultados a meu ver muito muito bons. 

Não era a caravana, não era a banda, não era o casal a valsar, não era o leilão dos sapatinhos de rubi, mas era o disco-voador que eu ouvia em Raul, para além de tantas outras mensagens.

De todas as coisas amalucadas ditas com simplicidade pelo Raul, vale sempre repetir o apelo, emocionado e ao mesmo tempo impraticável, daqueles de fazer sorrir usando só o canto dos lábios:

"Ô Ô seu moço, do disco voador, me leve com você, pra onde você for
Ô Ô seu moço, mas não me deixe aqui, enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí".