Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


sábado, 21 de janeiro de 2012

Ao olho do furacão




Memórias de um Sargento de Milícias, O Cortiço, Vidas Secas e  Capitães da Areia estão presentes na lista das leituras obrigatórias de dois exames brasileiros muito concorridos, um que permite o ingresso num curso da USP e outro que dá acesso à UNICAMP.

USP e UNICAMP são universidades públicas, têm que fazer uma triagem, pois muita gente sonha estudar num curso oferecido por uma e por outra e não cabe toda a gente lá dentro, como facilmente se compreende.

Exigir algumas leituras dos candidatos é justo, penso eu. Sinceramente não me lembro dos moldes em que os exames são apresentados aos candidatos, mas se eles entenderem que vale a pena concorrer e que vale a pena conhecer literatura, moldes serão apenas moldes. Entre mortos e feridos, salvam-se todos.

A literatura brasileira tem autores e obras muito bons, e é importante conhecê-los; é preciso, de qualquer modo, ler bem vários tipos de texto, ler com atenção, tendo em mente a relação entre um livro e outro, a relação entre um livro e seu autor, entre um livro e sua época, entre um livro e seu mercado editorial. Para mim,  posicionar esses atores é mais importante do que dominar jogos que têm mil fases. Ok, são universos muito diferentes, mas quem tem adolescente por perto sabe quantas horas um deles pode estar à frente do computador ou do aparelho de televisão para ultrapassar fases. É isso? Não gosto de jogos de computador, estou, então, supondo. Não sei bem qual o prazer que eles dão. Tenho a certeza, no entanto, de que a literatura proporciona momentos excelentes. Eles nos elevam. Podem não ser tão leves quanto os dos jogos, mas saímos enriquecidos depois deles. 

Aos livros.


Memórias de um Sargento de Milícias é divertido, narra as confusões em que o protagonista se ia metendo e com que espírito ele se safava. Nós, enquanto lemos e rimos, ficamos a conhecer a cidade dele, uma cidade nossa retratada numa fase especial, de muitas mudanças urbanas. 

O Cortiço é muito mais pesado e mais rígido. Mas as cidades grandes, no Brasil, tiveram e têm habitações coletivas, degradadas, complexas como a do livro. Se um escritor deu-se ao trabalho de pôr no papel uma descrição das personagens que passavam por aquele ambiente, vamos ler!


Vidas Secas é um livro simples e bom, tão bom. Tem o atrativo da ordem dos capítulos, que por si só dá notícia das desigualdades brasileiras: aconteça o que acontecer, leia-se quase como quiser este livro, Fabiano e família não escapam da pobreza, não escapam da ignorância, não escapam. Eles têm a cachorrinha, a que chamam Baleia. Raramente vão à cidade. Fazem contas sem a certeza de saber fazer e sem confiar em quem diz que sabe. E não tem voz nem palavras pra tudo, Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais novo e o menino mais velho não têm!


O que dizer dos Capitães da Areia? Li o livro pela primeira vez quando era adolescente, por isso e por causa da qualidade dele, ainda bem, guardo uma impressão muito emocional do enredo e das personagens. Jorge Amado puxou pelo leitor, o leitor adolescente e não só, ao fazer personagens tão puras e tão machucadas, ao mesmo tempo, empurradas para situações que alguns adultos não chegam a enfrentar. Foi buscar essas histórias na década de 30 do século passado, pôs como cenário um trapiche, narrou brigas de rua, assaltos, lembrou de pessoas que acolhem, de meninos com talentos desperdiçados e mais, muito mais. A extrapolação pode ser abusiva, disparatada, mas me veio à cabeça outro livro que têm os adolescentes no olho do furacão: O Senhor das Moscas, de William Golding. A leitura também me deixou com os nervos à flor da pele. Eles não estiveram sempre à margem, foram parar à margem por acidente, mas neles bateu o instinto selvagem de ataque e de defesa que regia a vida dos dos capitães da areia. 


Por que, afinal, custa tanto ao brasileiro ler a literatura produzida com qualidade por brasileiros? Ao olho do furacão só vai quem quer?