Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quarta-feira, 16 de maio de 2012

"O mundo é um moinho"





O mundo é um moinho, então.

O compositor brasileiro Cartola, cerca de trinta anos atrás, pôs as coisas nesses termos:


"Ouça-me bem, amor

Preste atenção, o mundo é um moinho

Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos.
Vai reduzir as ilusões a pó"

Cazuza, autor do comentário "Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve", gravou essa música e hoje a versão dele é mais fácil de encontrar do que a versão original.



Um já tinha dito, o outro fez-lhe eco.

A mim, o tipo de aviso que a música carrega costumava assustar.

Quanto mais caminho por aí, no entanto, menos esse tipo de susto cresce dentro de mim.

Às vezes ele ainda faz uma espécie de bolo na zona da barriga, se eu cogito muito; mas o bolo se desfaz, sem tempo de ganhar outra consistência. Ao contrário, ele se dissipa, é tragado pela minha necessidade de digestão.

Um moinho não é, afinal, sinônimo de atropelo, de bola de neve, de cruz. 

Moinho é movimento, é mudança.

Cartola pode ter pensado que sim, que a vida é uma sucessão de sofrimentos, pois outras estrofes de "O mundo é um moinho" corroboram a ideia de decadência e de impotência, mesmo quando se escolhe:

 "Ainda é cedo amor

Mal começaste a conhecer a vida

Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar



Preste atenção, querida

Embora eu saiba que estás resolvida
em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és..."



Mas que postura aconselhar, então, diante da pequena margem de que cada um dispõe para fazer escolhas, ao longo da vida? 

Entre o ir e o ficar, ceder ou exercer pressão, testemunhar ou fechar os olhos, onde está a garantia de êxito?

Garantia de perenidade, impossível! Não há. 

O tempo há-de correr, o corpo muda, os desejos ganham contornos diferentes, as metas se curvam às necessidades, tantas vezes.

A gente constata as quedas, a gente lambe as feridas, como se costuma dizer, a gente cuida e, como resultado, conhece-se melhor, quer com mais profundidade não magoar nem ser magoado, se estiver bem sintonizado.

Da música e do recado que ela me transmite ficam apenas uma apreciação meio vaga, meio temerosa. 

A gente se desafia, a gente se consola, a gente sonha com mais vagar, porque tem que ser!