Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quinta-feira, 17 de maio de 2012



Para não induzir ao erro de supor que estive horas no espaço físico de um museu, à frente do quadro acima, sublinho que estive a olhar para ele apenas depois de aceder ao site do Instituto Itaú Cultural, e sempre através do ecrã/tela do computador. Fiz a consulta ao site no dia 28 de janeiro deste ano.

Porque só me vali do computador e ele tem seus limites – isso para não falar nos meus limites -, saliento que as cores, no quadro que o meu computador maltratado me dá, podem não corresponder ao quadro original, pois a internet permite e ao mesmo tempo não permite conhecer.

A propósito de acertos e erros, esclareço que as medidas do quadro são 85 x 79 cm. É quase a forma de um quadrado. A informação está disponível na internet, restando a quem tem boa noção de espaço dimensionar a obra.

Escrevo sobre este quadro porque nunca precisei refletir demais sobre as perspectivas de uma amizade, porque me interessa o que esse tema suscita em mim, hoje, e porque não me agrada de todo o resultado que vejo nele; mas ficava contente em ler comentários sobre leituras diferentes, principalmente por causa da lacuna entre o palpável e o virtual do quadro em questão.

O título dele é “Doppelbidnis Margarete und Zoe [Duas amigas]” e o pintor, Lasar Segall. Está assinado no canto superior esquerdo. A data compreende o intervalo entre os anos de 1917 e 1918.

Quadro com quase cem anos de existência, está numa coleção particular. Desde quando? Não sei.

Também não sei de quem é a coleção. A quem estará confiado (e confinado) o quadro? Fico a imaginá-lo numa sala muito solene, pregado numa parede.

Minhas dúvidas, no entanto, repousam na zona das intenções sob controle, não preciso que sejam respondidas.

Vamos, então, às ideias que brotaram da apreciação do quadro.

O título evoca a amizade. Hoje, como já falei de raspão, esse tema tem um quê de árido, mais do que de romântico ou de fluido.

E por que, então? Que fazem duas amigas que possam me causar estranheza?

Eu poderia ir por vários caminhos: a amizade entre adolescentes, a amizade entre os homens e as mulheres, a amizade que dura toda a vida adulta etc, mas é melhor limitar o raciocínio ao que o quadro oferece: duas amigas jovens.

Não sabemos desde quando são amigas. A amizade terá passado fases boas e fases más? Provavelmente.

Na pose em que as vemos, por obra de Lasar Segall, olham para direções diferentes. Seus olhares não se cruzam.

O corpo de uma delas tem uma torção esquisita. Para estar sentada ao lado da amiga é que ela assim está? Ou ela não aprecia contato físico, e por isso chega o corpo um pouco para a esquerda?

Pode ser que uma delas estivesse muito mais (as)sentada do que a outra… a de cabelos e casaco (ou será, antes, uma camisa?) de cor quente parece prestes a levantar, enquanto a de olhar pacífico não procura fazer movimento.

Esses olhares e essas poses me levam a pensar na sintonia.

Pode ser que entre as duas moças tenha faltado essa tal de sintonia.

Se sintonia tem que ver com identidade, a falta de sintonia acontece muitas vezes entre nós e as pessoas de que gostamos, as pessoas de quem podemos dizer que fazem parte do nosso círculo.

Lasar Segall pintou esse quadro há quase cem anos. Hoje, somos muito descuidados nas aproximações e na manutenção dos contatos.

Octavio Paz escreveu sobre perda de sentido, estudada por ele no que toca o universo da poesia. Segundo ele, desde há algumas décadas enfrentamos uma fase de percepções tão dissociadas umas das outras, que o sentido que determinado poeta tinha posto num poema, por exemplo, perde o estatuto de verdade para quem o lê. Não damos conta de saber que as imagens têm o poder de representar, não encontramos correspondência entre as nossas imagens de eleição e as dos outros. De pessoa a pessoa, enfim, um elo está partido, pois não existe diálogo.

Sem diálogo, sem troca de representações, sem sintonia, matamos tempo a conviver sem conviver, como duas amigas sentadas bem próximas, mas fechadas em mundos particulares. Podemos até gostar de nomear a outra ao relembrarmos os amigos, mas entre a intenção boa e a realização, que distância vai!

O que Lasar Segall pintou não tem confluência de olhares. As personagens não esboçam gesto típico de conversa; ficássemos então com a hipótese de trocarem mensagens pelo olhar, estávamos agora frustrados na tentativa de entendê-las.

Pode ser exagero da minha parte, mas o que os corpos conversam não denota esforço. No bom sentido do esforço, não. Não ficamos com pistas de que se entendem bem dentro de um regime de poucas palavras, nem temos como afirmar que só estão alheias uma da outra porque acabaram de discutir. Elas também não conversam conosco.

Uma repousa, a outra ameaça sair. Mas não sabemos o que faz delas amigas.

Estarão de mãos dadas? Às vezes olho e me parece que sim.

Seria uma forma de troca, troca de calor, toque, um sinal de aceitação, de harmonia.

Mas e as cores? E a luz?

Passou-me pela cabeça que uma tinha sido metida numa tina com tinta amarela e a outra tinha apanhado um mormaço terrível. Num dia quente e (h)úmido, a mais inquieta saiu à rua sem chapéu; a outra, adoentada ou insaciável bebedora de chá, viu-se tingida de amarelo depois de muito chazinho de camomila e assim ficou, imóvel!

Não sei qual a associação que me assalta, mas atribuo a falta de sintonia também à diferença de cores, como se nem nisso elas pudessem concordar.

Têm saias muito rodadas, ambas prenderam o cabelo na altura da nuca, consentiram em posar para o artista, dizem-se amigas (ou o pintor assim o diz a nós), mas não querem dar nas vistas…

Antecipam um desencontro muito atual, muito corriqueiro. Um silêncio que outras telas não têm, mesmo que sejam mais apelativas aos olhos que aos ouvidos. Parecem dizer:

- Não temos do que rir. Nada no campo de visão captura nosso olhar. Não nos deixamos influenciar uma pela outra. A amizade? Ah, ela resiste a tudo.

Toda esta minha divagação, no entanto, passou longe do que está de verdade no interior, sem ter que dar mostras de que lá está.

Vejo fotografias minhas com uma e outra amiga e sei que não fazíamos esforço para caracterizar a amizade. Ainda mais eu, que custo a descontrair.

Mas na pintura, na premeditação a que o pintor tem direito, na tentativa de representação, não seria legítimo  ver a amizade caracterizada? Seja na altivez dos jovens, seja na precipitação dos jovens, essa amizade podia transparecer.

Lasar Segall tinha pouco menos de 30 anos quando fez o quadro. Era já homem viajado e as enciclopédias de arte assinalam justamente o ano de 1917, ano em que o quadro “Doppelbidnis Margarete und Zoe [Duas amigas]” começou a ser criado, como um ano de muito exercício expressionista da parte dele.

Se falava mais alto o desejo de subjetividade, em vez de uma opção pela documentação, então realmente minha ideia de amizade está incompleta.

A concepção de Lasar Segall e a minha concepção pouca intersecção fazem. Fica de todo modo a ressalva: nunca tentei expressar essa minha concepção, aliás mutante, na linguagem da pintura.

A minha visão de juventude, a minha visão do ato de retratar o etéreo, a minha necessidade de brincadeira, e ao mesmo tempo de provas quase físicas, não acha conforto no quadro dele.

Saio indecisa da decifração, da posição de quem olha.

Minha passagem pela escola, na quente cidade de Piracicaba, deu-me amigas muito diferentes de mim,  graças a Deus, várias delas espalhafatosas.

Na faculdade, há uma amiga impagável, nesse gênero pastelão. Demos aula em dupla, durante um tempo, era a primeira experiência formal de uma e de outra como professora, e eu respondi um sonoro e convicto "sim", a uma pergunta feita em voz alta por um aluno, ao passo em que ela respondeu outro sonoro e convicto "não" para a mesma pergunta.

Como adulta, que quero eu das amizades?

Notícia regular de uma amizade amorosa, de fé, que atravessa continentes. Se hoje acredito mais, é muito por causa de uma amizade, de uma intimidade que eu consinto, de um reforço daquilo que considero virtudes minhas - e dela!

Se fosse eu a pintar-nos, a mim e a ela?

Nem pensar, a artista não sou eu...