De Catherine Labey,
desenhadora com pelo menos nove títulos de banda desenhada ligados à literatura
de ficção, é possível conhecer histórias curtas, recorrendo ao blog que ela
própria mantém: pinturasebdcatlabey.blogspot.com. Estão expostas aguarelas e acrílicos,
além das BDs. Encontramos, por exemplo, A
Carta Roubada, feita a partir de conto do escritor norte-americano Edgar
Allan Poe, e As Velhas Chinelas, que é
parte do álbum Novos Contos das Mil e Uma
Noites.
A artista, nascida em França no ano de 1945 e naturalizada portuguesa em
1975, também assina os desenhos do livro Provérbios…
com Gatos!. A edição é recente (foi lançada em abril de 2012) e pode ser
vista na secção infantil das grandes livrarias portuguesas.
O livro contém uma seleção de 90 provérbios em língua portuguesa,
representados visualmente ora em uma tira de apenas uma vinheta, ora em uma
tira subdividida em duas ou três vinhetas. Cada página tem duas tiras, todas
elas coloridas
.
A primeira orelha do livro apresenta ao leitor um pequeno texto acerca da
autora e a segunda chama atenção, ainda que muito vagamente, para o universo
dos provérbios: “Muitos provérbios
existem também além-fronteiras, outros têm um sabor essencialmente português”.
Saltam do 3º § dessa segunda dobra do livro algumas questões: qual a
definição de provérbio? Qual a origem dos provérbios? Qual o alcance ou qual a zona
de abrangência de um provérbio?
Não é exagero lembrar, numa época de tanta informação e de pouco
conhecimento, que os provérbios estão dentro de um grande conjunto a que damos
o nome de Literatura Oral.
Os aforismos cabem nesse mesmo conjunto, as fábulas, as parábolas e os
contos tradicionais também. Estes últimos surgiram mais recentemente, no
entanto. Todos remetem à necessidade de divertir
e de educar, na qual os bons narradores
orais iam investindo energia.
Vale a pena imaginar a seguinte cena: numa espécie de ritual à volta de
uma fogueira, havia pessoas que assumiam a função de narrar e, então, contavam a
história que mais desse ao restante do grupo força e motivação, entre outras
virtudes. Força e motivação deveriam ser suficientes para que os membros do
grupo enfrentassem as dificuldades típicas daquele contexto social e histórico.
Em épocas remotas era imperativo enfrentar perigos naturais, como caçar
para sobreviver ou percorrer longas distâncias para chegar a um novo local de
alojamento, após a derrota para um inimigo. Relatos acerca de quem tivesse
conquistado uma vitória, provavelmente encorajavam os ouvintes. Na tradição
oral, esses relatos cabiam ao narrador.
A literatura, nesse sentido, dava o melhor uso possível à magia da
palavra e à comunicação interpessoal, aproveitando a capacidade de memorização
dos ouvintes.
O recurso à palavra foi documentado e hoje sabemos inclusive que contar
histórias fazia parte da rotina dos homens de épocas primordiais. Inscrições em
pedras e em pergaminhos foram alguns dos documentos que permitiram aos
investigadores constatar a transformação da experiência em palavra.
Histórias que hoje assumimos como parte da identidade coletiva do nosso
país (ou de uma região em particular, dentro do nosso país) tiveram numerosas
versões, em tempos passados.
Isso pode significar que a partir de uma origem comum, mesmo que de
difícil precisão na linha do tempo, as histórias iam gradativamente sendo
modificadas. As modificações incidiam mais na introdução e talvez nascessem do
referido desejo de promover identificação entre o ouvinte e a história.
Tudo isso garantiu vida longa aos provérbios.
Eles condensavam tramas, enredos, tinham o poder de resumir uma história mais
demorada e, assim, ouvintes aderiam a esse artifício. Os provérbios se moldavam
ao lugar e ao grupo que habitava esse lugar, e então eram repetidos,
transmitidos.
Hoje, enquanto conversamos e aconselhamos, para que nosso interlocutor tenha
a certeza de que compreendemos uma situação, para que saiba se estamos contra
ou a favor de um ponto de vista, também usamos os provérbios. Atingimos mais
depressa um ponto, se os usarmos.
Um provérbio, nesse sentido, é parte do nosso código, é também uma
convenção e, por ser aceite no seio de um grupo, o nosso grupo social, ajuda a
dar forma à nossa identidade.
Levados ao mundo da banda desenhada, os provérbios ajudam a compor,
também, a identidade visual do público a que servem.
Os 90 provérbios selecionados por Catherine Labey falam quiçá mais com o
público português do que parece.
Os gatos que Catherine Labey desenhou para repor os provérbios em nosso
dia a dia são personagens vadias que saltam um muro, entram num buraco,
deslizam por nossas varandas, à procura do sol da tarde. Têm que ver com uma
certa calma e com um certo espírito de sobrevivência aguçado (mas não tão tenso
quanto em outros lugares), que estão na vida das pessoas em Portugal.
Não é o país que se quer cosmopolita para não aludir às raízes, não é o
país que se pergunta a toda hora o que tem sido feito dos impulsos para
protestar e para romper barreiras.
Os gatos de Catherine Labey e os provérbios, ao mesmo tempo universais e
locais, estão a serviço de um país de ruas de paralelo ou de alcatrão e, ainda
assim, cheias de terra e de areia, propícias ao trânsito dos animais. País que
estrangeiros como a desenhadora Catherine Labey deixam penetrar debaixo da
pele, porque tem um ritmo acolhedor, uma paisagem branda e bucólica, uma
sabedoria que em lugares de ritmo mais frenético deixou de fazer sentido - ou
nunca o fez, sequer.