Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"Se lágrima fosse de pedra, eu choraria"

O samba é relativamente recente e o sambista, dos bons.

O sambista atende pelo nome de Paulinho da Viola, conhecido dos brasileiros.

Ao samba, Paulinho chamou "Bebadosamba", e eu fui buscar a primeira frase para o título deste post.

Ela faz as vezes de contraponto a um pensamento caro: faz de conta que alguém fala em voz alta e verbaliza uma lembrança, recorda uma referência que é uma pérola (de ironia), como ele próprio explica: "Um mestre do verso, de olhar destemido, disse uma vez, com certa ironia, se lágrima fosse de pedra, eu choraria".

Durante uns tempos eu ouvia essa música e pensava na lágrima de pedra como uma aberração, um exagero de mau gosto, estranhamente colocado numa música tão boa de ouvir.

Não vale a pena ser maniqueísta... o mau, o bom... em quantas situações é difícil separar um do outro, a não ser quando se atinge um limite pessoal, penso eu. 

Por que seria de mau gosto sugerir um choro que dói mais do que o comum? 

Por que a boa música tem que ser impoluta, livre de beliscões?

Eu ouvia a música e desenhava o contorno de pequenos cubos a irromperem, a caírem do canto do olho, não em linha mas projetados para a frente do rosto. Ao ver esses cubos no ar, a expressão no rosto de quem já chorava outro desconsolo ficava mais triste! 

O sofrimento me parecia multiplicado, brotava das palavras do sambista como algo duro de ouvir e surgia no desenho como um horror...

Quando se lê certos livros, compostos com extremos de grotesco, por exemplo, as imagens sugeridas por palavras ou ilustradas de verdade devem ser levadas a sério. É o caso de A Metamorfose, do Kafka, que o leitor concebe melhor se aceitar que Gregor Samsa acordou um dia transformado num inseto repugnante. Não é uma suposição nem uma metáfora, é a vida dele e ponto.

A vida, dizem os livros e as letras de música, tem dessas ciladas. É algo que livros e músicas nos podem ensinar, se quisermos viver com a realidade. E se formos do tipo que acredita em transcendência. A transcendência passa a fazer mais sentido, se soubermos o que ultrapassar.

Ao final da letra do samba, para quem é observador, está lá:


"Meu choro, Boca,
...
serve,
antes de tudo,
para aliviar o peso das palavras,
que ninguém é de pedra"



Claro que as lágrimas são para todos.

O homem comum nem pensa se chora a lágrima comum ou não. Ele apenas chora.

Homem que se quer de pedra, brinca ao dizer que chora lágrima de pedra.

Mas todo mundo chora a lágrima possível, a lágrima do tamanho da sua dor.

Claro está, ou claro fica. 

Nada é perfeito, é tudo muito real, é tudo feito de pedra. 



Um livro para muitos gatos


De Catherine Labey, desenhadora com pelo menos nove títulos de banda desenhada ligados à literatura de ficção, é possível conhecer histórias curtas, recorrendo ao blog que ela própria mantém: pinturasebdcatlabey.blogspot.com. Estão expostas aguarelas e acrílicos, além das BDs. Encontramos, por exemplo, A Carta Roubada, feita a partir de conto do escritor norte-americano Edgar Allan Poe, e As Velhas Chinelas, que é parte do álbum Novos Contos das Mil e Uma Noites. 
A artista, nascida em França no ano de 1945 e naturalizada portuguesa em 1975, também assina os desenhos do livro Provérbios… com Gatos!. A edição é recente (foi lançada em abril de 2012) e pode ser vista na secção infantil das grandes livrarias portuguesas.
O livro contém uma seleção de 90 provérbios em língua portuguesa, representados visualmente ora em uma tira de apenas uma vinheta, ora em uma tira subdividida em duas ou três vinhetas. Cada página tem duas tiras, todas elas coloridas[1].
A primeira orelha do livro apresenta ao leitor um pequeno texto acerca da autora e a segunda chama atenção, ainda que muito vagamente, para o universo dos provérbios: “Muitos provérbios existem também além-fronteiras, outros têm um sabor essencialmente português”.
Saltam do 3º § dessa segunda dobra do livro algumas questões: qual a definição de provérbio? Qual a origem dos provérbios? Qual o alcance ou qual a zona de abrangência de um provérbio?
Não é exagero lembrar, numa época de tanta informação e de pouco conhecimento, que os provérbios estão dentro de um grande conjunto a que damos o nome de Literatura Oral.
Os aforismos cabem nesse mesmo conjunto, as fábulas, as parábolas e os contos tradicionais também. Estes últimos surgiram mais recentemente, no entanto. Todos remetem à necessidade de divertir e de educar, na qual os bons narradores orais iam investindo energia.
Vale a pena imaginar a seguinte cena: numa espécie de ritual à volta de uma fogueira, havia pessoas que assumiam a função de narrar e, então, contavam a história que mais desse ao restante do grupo força e motivação, entre outras virtudes. Força e motivação deveriam ser suficientes para que os membros do grupo enfrentassem as dificuldades típicas daquele contexto social e histórico.
Em épocas remotas era imperativo enfrentar perigos naturais, como caçar para sobreviver ou percorrer longas distâncias para chegar a um novo local de alojamento, após a derrota para um inimigo. Relatos acerca de quem tivesse conquistado uma vitória, provavelmente encorajavam os ouvintes. Na tradição oral, esses relatos cabiam ao narrador.
A literatura, nesse sentido, dava o melhor uso possível à magia da palavra e à comunicação interpessoal, aproveitando a capacidade de memorização dos ouvintes.
O recurso à palavra foi documentado e hoje sabemos inclusive que contar histórias fazia parte da rotina dos homens de épocas primordiais. Inscrições em pedras e em pergaminhos foram alguns dos documentos que permitiram aos investigadores constatar a transformação da experiência em palavra.
Histórias que hoje assumimos como parte da identidade coletiva do nosso país (ou de uma região em particular, dentro do nosso país) tiveram numerosas versões, em tempos passados.
Isso pode significar que a partir de uma origem comum, mesmo que de difícil precisão na linha do tempo, as histórias iam gradativamente sendo modificadas. As modificações incidiam mais na introdução e talvez nascessem do referido desejo de promover identificação entre o ouvinte e a história.
Tudo isso garantiu vida longa aos provérbios.
Eles condensavam tramas, enredos, tinham o poder de resumir uma história mais demorada e, assim, ouvintes aderiam a esse artifício. Os provérbios se moldavam ao lugar e ao grupo que habitava esse lugar, e então eram repetidos, transmitidos.
Hoje, enquanto conversamos e aconselhamos, para que nosso interlocutor tenha a certeza de que compreendemos uma situação, para que saiba se estamos contra ou a favor de um ponto de vista, também usamos os provérbios. Atingimos mais depressa um ponto, se os usarmos.
Um provérbio, nesse sentido, é parte do nosso código, é também uma convenção e, por ser aceite no seio de um grupo, o nosso grupo social, ajuda a dar forma à nossa identidade.
Levados ao mundo da banda desenhada, os provérbios ajudam a compor, também, a identidade visual do público a que servem.


Os 90 provérbios selecionados por Catherine Labey falam quiçá mais com o público português do que parece.
Os gatos que Catherine Labey desenhou para repor os provérbios em nosso dia a dia são personagens vadias que saltam um muro, entram num buraco, deslizam por nossas varandas, à procura do sol da tarde. Têm que ver com uma certa calma e com um certo espírito de sobrevivência aguçado (mas não tão tenso quanto em outros lugares), que estão na vida das pessoas em Portugal.
Não é o país que se quer cosmopolita para não aludir às raízes, não é o país que se pergunta a toda hora o que tem sido feito dos impulsos para protestar e para romper barreiras.
Os gatos de Catherine Labey e os provérbios, ao mesmo tempo universais e locais, estão a serviço de um país de ruas de paralelo ou de alcatrão e, ainda assim, cheias de terra e de areia, propícias ao trânsito dos animais. País que estrangeiros como a desenhadora Catherine Labey deixam penetrar debaixo da pele, porque tem um ritmo acolhedor, uma paisagem branda e bucólica, uma sabedoria que em lugares de ritmo mais frenético deixou de fazer sentido - ou nunca o fez, sequer.


[1] Na crítica de João Miguel Lameiras, publicada no periódico As beiras do dia 14.05.2012 (http://www.asbeiras.pt/2012/05/bd-gatos/), lemos, a propósito das cores: “(…) este livro é uma bela ideia. Bela ideia, que só teria a ganhar com um tratamento de cor mais plana, pois a cor digital de Labey tem demasiado brilhos e efeitos de Photoshop que não combinam bem com a elegância clássica e algo naif do traço da autora”.