Em
tudo existe um limite. A vida é cíclica e nada aumenta ou diminui eternamente.
O movimento parece ser outro.
Se
os desejos, por exemplo, não conhecem limites, eles se impõem um dia, obrigando
homens e mulheres a viver em função da satisfação desses desejos. Assim, começam a perder pontos em áreas da vida que até então eram mais ou
menos leves, mais ou menos equilibradas.
Mal
comparando, é como se o desejo de comer doces virasse compulsão e o peso ganho com
a ingestão exagerada transformasse qualquer caminhada num suplício, qualquer
esforço físico, num drama, até ser impossível encarar uma ladeira, até ser
impossível refrear a gula.
Essa
condição está projetada na tela/ecrã do cinema de Portugal desde há uma semana.
Leonardo DiCaprio expressa, na pele de Jay Gatsby, o quanto o desejo de retorno
ao passado pode ser espinhoso.
Fui
vê-lo por causa do livro de Scott Fitzgerald e também por causa da curiosidade quanto a esta adaptação para o cinema.
O
que a personagem queria resgatar do passado? Uma paixão.
Nada
de muito novo, pois não? A agudeza do escritor norte-americano realmente
não estava nesse ponto.
Gatsby
queria de volta uma mulher, ela o queria e queria também a redoma protetora em que o
marido a mantinha, o marido dela queria ao mesmo tempo duas mulheres jovens e
bonitas, uma delas queria infinitamente mais o amante do que o próprio marido,
enfim, numa só trama de ficção, várias personagens moviam-se precariamente na
vida, em função das paixões.
A
carência afetiva, vista desse ângulo, não surpreende, ela abunda! Já ouvi um
psicólogo referir certa vez a existência de estudos recentes a apontarem para
cerca de 80% de casais amparados na mentira, para sustentar relações
extraconjugais e casamentos arrastados. Agarrar-se às tábuas de salvação com
unhas e dentes seria o prato nosso de cada dia… seria uma forma de conhecer o
fim com dor.
Mas
lá, na efervescência nova-iorquina dos anos 20 do século passado, o indomável
não era o adultério, não era a carência, era antes a obsessão em supri-la, em
queimar tudo para supri-la. Scott Fitzgerald foi ele mesmo um sujeito com pouco
equilíbrio; isto somado ao talento para a literatura pode ter resultado no
reconhecimento de que certos exageros, certas metas auto-impostas dão em ruína.
Na trama de O Grande Gatsby, o
escritor pôs um protagonista que tinha como objeto de desejo um sonho mais
antigo, um vazio mais aterrador, cuja recusa incluía, de mistura, uma mulher
muito querida.
Gatsby,
para quem nunca leu o romance, é um daqueles homens que inventou uma origem de ouro,
contrariou a pobreza real, perseguiu sem limites um pedestal no qual a vida amorosa
era a cereja no topo do bolo.
Tudo
o que Gatsby desejou, desde criança, era ser especial, era alcançar o céu dos outros para
desfrutar a vida. Durante a caminhada em direção à conquista, conheceu Daisy e
ela passou a simbolizar a chegada ao topo, porque valeria a pena perseguir esse
sonho, se parecesse uma conquista para os dois.
Soa
tão romântico, soa tão promissora a empreitada dele. Enquanto estamos a admirar
nele esse dom de esperança, outra ordem se instala, no entanto. O olho de Deus em que Fitzgerald pôs uma armação de óculos capta o feitiço de um, a admiração de outro e a máquina continuar a andar, promovendo mudanças.
Para
Nick Carraway, o narrador representado no cinema por
Tobey Maguire, o fascínio que Gatsby exercia era o do otimismo, da dignidade.
Gatsby, sujeito mal nascido e bem sucedido, era inquestionavelmente um homem de
esperanças, de abertura para o mundo, de uma curiosa integridade. Era mil vezes
mais admirável do que Daisy, do que o marido de Daisy, do que vários outros
representantes das classes altas que violentam todo e qualquer sonho para nunca
descer do pedestal. Como já vieram ao mundo conhecendo esse lugar de sonho, como
sempre estiveram lá - muito embora não gozem desse privilégio com sabedoria de
viver -, não estão dispostos a abrir mão dele.
Depois
de ganhar dinheiro, de gastar dinheiro, de sair nos jornais, de aparentar boas
maneiras e de se fazer temer em razão de boatos cuidadosamente difundidos,
Gatsby ainda sonhava com a repetição de um caso de amor. Queria tudo, queria
desde sempre, queria sem perguntar se alguém é verdadeiramente capaz de subir
tanto e permanecer no alto.
Com
a mira apontada para esse ideal de felicidade, Gatsby subiu e não vacilou até
ao fim, convencido de que podia confiar no seu tino para o sucesso.
Gatsby
abria espaço para subir, Daisy e os outros estavam sentados lá em cima e viviam
estagnados, com o desejo de nunca descer.
Mas
vida é definitivamente feita de movimento. Até um sonho de criança pode fazer
uma pessoa caminhar, contente, para uma armadilha.
Quando
uma obsessão está no controle, somos cego, perdidos por mais que o alvo
pareça próximo.
O
romance considerado obra-prima do escritor é pulsante, tem observações
pungentes e, dentro delas, uma regra simples, que por milhares de razões
pessoais parece difícil de obedecer – e não vai neste comentário crítica
alguma: a vida tem limites, o êxito pessoal pode ser uma cilada, o quê para
triunfar e para seduzir pode levar ao mais alto grau de decepção e de
degradação. Gatsby aprendeu muito, farejou o caminho até o êxito porém, em
certo ponto desse caminho, foi engolido pelo mistério, tragado por uma regra
maior, por um limite.
Num
último movimento, foi a arte de contar histórias, neste caso a história dessa enorme viagem da
personagem Jay Gatsby, que permitiu a redenção e o recomeço da vida do narrador. Assolapado por ter assistido à ilusão do amigo, conseguiu se recuperar porque
encarou a tarefa de dizer o que de puro e de potente há nas nossas raízes, o que
por um excesso de imaginação estragamos, comprometemos e não chegamos a
controlar.
O
frisson do livro pareceu-me estar no filme. Nos diálogos, sem dúvida. Na música
está, penso eu. Na dança das festas, idem. Nas paixões românticas, tolas e
destrutivas, também. Por ser uma versão em 3D, até parece que sopra um vento de
mudança a toda hora, na atmosfera de Gatsby, de Carraway, dos Buchanan, dos
Wilson. Só faltou um ar quente e depois um ar gelado, para ser possível sentir
na pele o que os excessos roubam da vida. Porque vida não é isso, acho eu...