Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quinta-feira, 23 de maio de 2013

Mudar sem ser o romântico de plantão


Em tudo existe um limite. A vida é cíclica e nada aumenta ou diminui eternamente. O movimento parece ser outro.
Se os desejos, por exemplo, não conhecem limites, eles se impõem um dia, obrigando homens e mulheres a viver em função da satisfação desses desejos. Assim, começam a perder pontos em áreas da vida que até então eram mais ou menos leves, mais ou menos equilibradas.
Mal comparando, é como se o desejo de comer doces virasse compulsão e o peso ganho com a ingestão exagerada transformasse qualquer caminhada num suplício, qualquer esforço físico, num drama, até ser impossível encarar uma ladeira, até ser impossível refrear a gula.
Essa condição está projetada na tela/ecrã do cinema de Portugal desde há uma semana. Leonardo DiCaprio expressa, na pele de Jay Gatsby, o quanto o desejo de retorno ao passado pode ser espinhoso.
Fui vê-lo por causa do livro de Scott Fitzgerald e também por causa da curiosidade quanto a esta adaptação para o cinema.
O que a personagem queria resgatar do passado? Uma paixão.
Nada de muito novo, pois não? A agudeza do escritor norte-americano realmente não estava nesse ponto.
Gatsby queria de volta uma mulher, ela o queria e queria também a redoma protetora em que o marido a mantinha, o marido dela queria ao mesmo tempo duas mulheres jovens e bonitas, uma delas queria infinitamente mais o amante do que o próprio marido, enfim, numa só trama de ficção, várias personagens moviam-se precariamente na vida, em função das paixões.
A carência afetiva, vista desse ângulo, não surpreende, ela abunda! Já ouvi um psicólogo referir certa vez a existência de estudos recentes a apontarem para cerca de 80% de casais amparados na mentira, para sustentar relações extraconjugais e casamentos arrastados. Agarrar-se às tábuas de salvação com unhas e dentes seria o prato nosso de cada dia… seria uma forma de conhecer o fim com dor.
Mas lá, na efervescência nova-iorquina dos anos 20 do século passado, o indomável não era o adultério, não era a carência, era antes a obsessão em supri-la, em queimar tudo para supri-la. Scott Fitzgerald foi ele mesmo um sujeito com pouco equilíbrio; isto somado ao talento para a literatura pode ter resultado no reconhecimento de que certos exageros, certas metas auto-impostas dão em ruína. Na trama de O Grande Gatsby, o escritor pôs um protagonista que tinha como objeto de desejo um sonho mais antigo, um vazio mais aterrador, cuja recusa incluía, de mistura, uma mulher muito querida.
Gatsby, para quem nunca leu o romance, é um daqueles homens que inventou uma origem de ouro, contrariou a pobreza real, perseguiu sem limites um pedestal no qual a vida amorosa era a cereja no topo do bolo.
Tudo o que Gatsby desejou, desde criança, era ser especial, era alcançar o céu dos outros para desfrutar a vida. Durante a caminhada em direção à conquista, conheceu Daisy e ela passou a simbolizar a chegada ao topo, porque valeria a pena perseguir esse sonho, se parecesse uma conquista para os dois.
Soa tão romântico, soa tão promissora a empreitada dele. Enquanto estamos a admirar nele esse dom de esperança, outra ordem se instala, no entanto. O olho de Deus em que Fitzgerald pôs uma armação de óculos capta o feitiço de um, a admiração de outro e a máquina continuar a andar, promovendo mudanças.
Para Nick Carraway, o narrador representado no cinema por Tobey Maguire, o fascínio que Gatsby exercia era o do otimismo, da dignidade. Gatsby, sujeito mal nascido e bem sucedido, era inquestionavelmente um homem de esperanças, de abertura para o mundo, de uma curiosa integridade. Era mil vezes mais admirável do que Daisy, do que o marido de Daisy, do que vários outros representantes das classes altas que violentam todo e qualquer sonho para nunca descer do pedestal. Como já vieram ao mundo conhecendo esse lugar de sonho, como sempre estiveram lá - muito embora não gozem desse privilégio com sabedoria de viver -, não estão dispostos a abrir mão dele.
Depois de ganhar dinheiro, de gastar dinheiro, de sair nos jornais, de aparentar boas maneiras e de se fazer temer em razão de boatos cuidadosamente difundidos, Gatsby ainda sonhava com a repetição de um caso de amor. Queria tudo, queria desde sempre, queria sem perguntar se alguém é verdadeiramente capaz de subir tanto e permanecer no alto.
Com a mira apontada para esse ideal de felicidade, Gatsby subiu e não vacilou até ao fim, convencido de que podia confiar no seu tino para o sucesso.
Gatsby abria espaço para subir, Daisy e os outros estavam sentados lá em cima e viviam estagnados, com o desejo de nunca descer.
Mas vida é definitivamente feita de movimento. Até um sonho de criança pode fazer uma pessoa caminhar, contente, para uma armadilha.
Quando uma obsessão está no controle, somos cego, perdidos por mais que o alvo pareça próximo.
O romance considerado obra-prima do escritor é pulsante, tem observações pungentes e, dentro delas, uma regra simples, que por milhares de razões pessoais parece difícil de obedecer – e não vai neste comentário crítica alguma: a vida tem limites, o êxito pessoal pode ser uma cilada, o quê para triunfar e para seduzir pode levar ao mais alto grau de decepção e de degradação. Gatsby aprendeu muito, farejou o caminho até o êxito porém, em certo ponto desse caminho, foi engolido pelo mistério, tragado por uma regra maior, por um limite.
Num último movimento, foi a arte de contar histórias, neste caso a história dessa enorme viagem da personagem Jay Gatsby, que permitiu a redenção e o recomeço da vida do narrador. Assolapado por ter assistido à ilusão do amigo, conseguiu se recuperar porque encarou a tarefa de dizer o que de puro e de potente há nas nossas raízes, o que por um excesso de imaginação estragamos, comprometemos e não chegamos a controlar.
O frisson do livro pareceu-me estar no filme. Nos diálogos, sem dúvida. Na música está, penso eu. Na dança das festas, idem. Nas paixões românticas, tolas e destrutivas, também. Por ser uma versão em 3D, até parece que sopra um vento de mudança a toda hora, na atmosfera de Gatsby, de Carraway, dos Buchanan, dos Wilson. Só faltou um ar quente e depois um ar gelado, para ser possível sentir na pele o que os excessos roubam da vida. Porque vida não é isso, acho eu...