Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Monstros S.A. ou Monstros e Companhia

Tenho assistido ao filme “Monstros S.A.” / “Monstros e Companhia” com meu filho.
Nunca o tinha feito antes de comprar o DVD para ele. Nem sabia que o filme tem mais de dez anos. Bom, eu ainda não era mãe na altura do lançamento e também já não era criança, adolescente ou livre para ver o que bem entendesse, à hora que quisesse.
Vimos juntos pela primeira vez há dias, e então pensei em uma série de detalhes que estão lá harmonizados.
Uma criança em frente à televisão ou ao computador, sem a nossa companhia, está bem se o programa a que ela assiste diverte e ensina, com um encanto próprio.
A música da abertura do filme é suave, o ritmo do jazz instrumental encontra paralelo no surgimento das imagens e na ação dos monstros que recolhem, que comem, letra por letra, a palavra que dá título ao filme. Eles abocanham, depois eles batem com a cauda e a letra salta etc, e meu filho acompanha os movimentos, muito atento.
E todas aquelas portas em tons de azul, ainda na abertura!? Tornam a aparecer no decorrer da ação e com muito mais força, em velocidade e em quantidade. Aparecem durante todo o filme, porque é da entrada de monstros pelas portas dos roupeiros, nos quartos das crianças, que estamos a falar nesse enredo. Mas as cenas em que elas voam, presas por cabos - e a sucessão delas parece interminável - é uma delícia. Lembrei dos teleféricos, do chapéu mexicano que faz nossas pernas balançarem no ar, mas no fundo é muito melhor.
Os corpos dos monstros também interessam. Fico a pensar no que parecerão a uma criança. Eu me pus a quantificar: este é verde, aquele é colorido, naquele predomina um bege mais apagado e por aí afora. Contei os que têm chifres e os que têm pontas arredondadas para todos os lados ou até membros molengos com os quais eles se equilibram; os que são muito altos e os que se arrastam pouco acima do chão; os que têm pelos e mais pelos e os que têm olhos e mais olhos. A Celia tem serpentes e guizo de cascavel no cabelo, a Rose mal tem lábios para marcar com o batom e até as pálpebras são pesadas – dela meu filho se esquiva no sofá da nossa sala. E não sou eu, não é você, não precisamos julgar, comparar conosco, dizer que fazem apologia dessa ou daquela aparência. São todos para rir e com um ou outro pormenor físico dá para simpatizar, seja pelo ar doce, seja pela alegria que emana (Mike Wazowski, por exemplo, nem se importa com a reduzida visibilidade do seu corpinho redondo e verde nos anúncios da empresa, ele vibra sempre e o espectador ri. Na versão portuguesa quem fez as falas dele foi João Baião e penso que o resultado está mesmo muito engraçado).
A ideia de que as crianças são nocivas e ao mesmo tempo úteis é uma proposta de mudança de perspectiva curiosa. Nosso mundo sem monstros e sem fábricas para extrair gritos infantis também passa pela noção de utilidade. Muito por causa dela é que as crianças não são respeitadas. Elas não produzem, assim como os idosos e os artistas. Há um livro de 1968, reeditado pelo menos mais cinco vezes, que mostra esses valores num texto claro e agradável de ler, por isso adequado ao estudante que não chegou ao ensino superior. O título é O Mundo Precisa de Filosofia, e o autor, Eduardo Prado de Mendonça. De acordo com Mendonça, quem gera dinheiro, quem pode ser associado à utilidade e ao progresso, tem prestígio. Quem alimenta o mundo dos afetos, por exemplo, é inútil. Tem seu valor, pois a inutilidade tem valor, mas pode ser mal cuidado pelos que só se rendem ao dinheiro, à utilidade e ao progresso.
No filme, o diretor da fábrica fala nas crianças cada vez mais difíceis de assustar para obter gritos e todos têm paúra de ser tocados por uma criança. As crianças são úteis, e mesmo assim são mal cuidadas.
Até que um génio na arte de assustar, um craque do susto é confrontado com uma menina e, fazendo na realidade apenas o que estava habituado, que é entregar-se às tarefas por inteiro, descobre o quanto uma menina oferece, de graça, e o quanto se arrepia, quando é amedrontada.
Sully, o mais eficiente assustador, dá-se bem com a menina porque é eficiente em tudo. Está onde é suposto estar, sem ressalvas. Se é necessário invadir o quarto das crianças, mesmo durante uma festa de pijamas, ele o faz. Se é hora de treinar, ele treina. Se a colega aparece bem na propaganda da empresa para a TV, ele reconhece o feito.
É muito óbvio que seja, assim, o bem-sucedido. É tão óbvio que me enternece. É tão importante, para mim, que me agrada pois, se meu filho, com o tempo, juntar essa e aquela ideia e entender o que é empatia, está excelente.
Disse-me uma entendida no assunto, que crianças acostumadas à ideia de empatia (porque lhes foi ensinada e porque viu seus pais porem-na em prática) escapam mais certamente à delinquência. Faz todo o sentido. É óbvio depois que se ouve o comentário. Uma vez tocadas pelo apelo de ver no outro uma possibilidade boa, respeitam-no, recebem-no, promovem empatia, formando laços.
Quem não se comove com o outro, quem não se arrepende pelo que fez de mau ao outro, e pelo que de bom deixou de fazer, tem mais problemas para se relacionar. Numa cena do filme, Sully revê-se numa gravação de vídeo, com a cara terrivelmente feroz, em ação a assustar alguém, e vê igualmente a carinha de pânico da menina, que naquele instante olhava para ele. Ele compreende que era tudo, menos aquilo, que cumpria fazer, uma vez que estava disposto a zelar por ela e já tinha inclusive sido banido para muito longe dela. Eles ultrapassam essa chatice e ele a devolve à casa, ok. Em seguida ele cria o seu próprio modelo de fábrica mas, reservada para o final do filme fica mesmo a melhor cara que um grandalhão pode fazer ao ouvir a voz de uma criança, e que só uma criança pode fazer nascer. Essa dádiva, felizmente, cabe aos que aprendem como cuidar do outro e, ainda, joga uma luz sobre os mais perdidinhos, aqueles que não cuidam e não compreendem a dor. Vai ver é por isso que precisam de fábricas mal concebidas, tramóias, comparsas e afins. Não há luz que chegue para quem não tem pares neste mundo. A luz aparece, dá sinais de vida, mas ela vai piscando, como se fosse um farol, até que ele deixa de reconhecê-la, porque ele nunca esteve lá.