Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Biografias, o dinheiro que não queremos dar e cultura


A segunda parte do relato de Christhiane F., em livro, foi anunciada ao público brasileiro por um jornal paulista de grande circulação, o Estadão.

Vi a reprodução desse anúncio no Facebook e arregalei os olhos ao ler os comentários, no link https://www.facebook.com/photo.php?fbid=752230891458642&set=a.124486140899790.24501.115987058416365&type=1&theater. Ninguém obrigará um leitor a adquirir o livro, não se trata da indústria da moda nem da farmacêutica. Por que raios, então, falar numa figura que estará, supostamente, a contar conosco para ganhar uns trocados, contando em seu livro o que ninguém quer saber?

Nesta época de estranhamento perante a publicação de biografias, vale a pena clarificar ideias - ou pelo menos aliviar a minha tensão! Facebook pode ser superficial, e quando menos esperamos, estamos cansados e desanimados com a repercussão de uma notícia ou outra. Eu me acho, então, incrivelmente mais só.

Agradeço, portanto, a todos os que se manifestarem nesta discussão. Quem sabe o blog nos dá suporte para outras conversas, menos mascaradas.

No meu país de origem, o Brasil, artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Roberto Carlos, muito diferentes uns dos outros, puseram-se francamente contra a veiculação de biografias não autorizadas pelo biografado. Fizeram pressão para inviabilizar a publicação desse tipo de livro, de que eu gosto bastante e que, feito com seriedade, deve dar muito trabalho ao escritor.

Ao primeiro do grupo, Caetano Veloso, foi direcionada uma carta aberta, como tentativa de fazer um contraponto e chamar à realidade, sim. O autor da carta é Benjamin Moser, autor também de uma longa biografia de Clarice Lispector que eu comentei neste blog. O texto dele para a Folha de S.Paulo saiu em 09 de outubro de 2013.

Salta aos olhos que esses figurões da música brasileira, acima da média em termos de realização artística, façam justamente o contrário do que se busca hoje na própria arte. Pois pelo menos as HQs/BDs, com que eu lido profissionalmente, estão voltadas para a exposição de biografias feitas com muita sensibilidade e muito labor. A mim não importa muito que sejam feitas a partir da decisão pessoal do biografado ou não. Trazem histórias, o resto é conosco.

Li durante o último julho Persépolis e Fun Home, respectivamente de Marjane Satrapi e Alison Bechdel. Li e recomendo.

A primeira autobiografia é uma delícia, uma vez que está lá uma boa dose de crítica refinada sobre as pequenas e as grandes decisões da adolescência, representadas, por exemplo, numa sequência de vinte e duas pequenas imagens da metamorfose física de Satrapi, no período que ela viveu na Áustria.


Ela nos contou que fizera muito para encobrir as mudanças do corpo, até perceber que, se a mudança agradava ou não a quem tinha uma cultura diferente da dela, azar! Ela precisava se assumir e andar satisfeita com a boa receção, vinda de colegas austríacos de quem ela menos esperava admiração.

A autora também não abriu mão do direito de falar de seu país, o Irã/Irão. Questionou formas de educação, mostrou o valor que as boas relações familiares têm, alfinetou de maneira inteligente pessoas com as quais conviveu, enfim, compôs um álbum gráfico sem castrações (visíveis).

Ao ilustrar uma parte da sua educação formal em Belas Artes, contou que as aulas de desenho do corpo eram dadas sem modelos nus à disposição do grupo de alunas e que, por isso, feitos todos os esforços de observação, restava-lhes a habilidade para retratar as pregas das roupas, sem a menor possibilidade de aprender a desenhar membros! 

Fiquei com a leitura, talvez equivocada, de que ela teria escrito e desenhado Persépolis porque descobriu que se integrar requer muita consciência, bons ouvidos, humildade e uma constante busca pelo melhor na nossa vida.

Não me parece uma descoberta fácil nem generalizada. Vale a pena partilhá-la, sem dúvida.

O livro de Alison Bechdel, por seu turno, é muito mais denso. As relações familiares, tópico do livro, eram presas, tristonhas, cheias de segredos que faziam com que a auto-afirmação fosse tarefa mais dura, só levada a cabo com sucesso porque naquela família a criatividade era uma marca, uma meta.




Mas a leitura de Fun Home é, na mesma, muito enriquecedora. Vale a pena por causa das muitas referências à literatura de ficção, vale a pena pelo final, comovente, pelo traço da desenhadora/desenhista.

Dito tudo isto, quanto eu lamento pelo momento que o Brasil passa! Finalmente existe maior estabilidade financeira, mas ela nem de longe se transforma em um rápido crescimento cultural no seu sentido mais pleno!

De longe, não é isso que se observa. Representantes tão conhecidos e tão valorizados quanto os músicos já mencionados aqui nadam contra a corrente. Livros com seu contributo, por que não, como Christiane F., são recebidos como se o único parâmetro de avaliação (e é preciso, mesmo, fazer comparação fora da escola, na qual ela tem efeitos didáticos?) fosse uma obra recente, como a da auto-intitulada Bruna Surfistinha, que eu arrisco dizer que não foi assim tão lida…

Será que as classes média e alta brasileiras não vão ter, nunca, espelho que revele o quão limitadas e limitantes são?

Quero saber dos meus ex-alunos a lerem e lerem, sem restrições, porque se recusam a ficar pelo mínimo ou pela opinião comprada aqui e ali.

Quero menos rancor, menos interesse pelo que de dinheiro circula, quando esta ou aquela obra chega ao mercado.

Quero mais recursos para lidar consigo e com o outro, e esses recursos a arte dá, mas temos que nos apresentar diante dela com boa vontade e algumas armas, para escapar daquilo que Alberto Manguel, muito sabiamente, tem chamado "A Idade da Vingança", isto é, a nossa era!