A segunda parte do relato de
Christhiane F., em livro, foi anunciada ao público brasileiro por um jornal
paulista de grande circulação, o Estadão.
Vi a reprodução desse anúncio no Facebook e arregalei os olhos ao ler os
comentários, no link https://www.facebook.com/photo.php?fbid=752230891458642&set=a.124486140899790.24501.115987058416365&type=1&theater.
Ninguém obrigará um leitor a adquirir o livro, não se trata da indústria da
moda nem da farmacêutica. Por que raios, então, falar numa figura que estará,
supostamente, a contar conosco para ganhar uns trocados, contando em seu livro
o que ninguém quer saber?
Nesta época de estranhamento
perante a publicação de biografias, vale a pena clarificar ideias - ou pelo
menos aliviar a minha tensão! Facebook pode ser superficial, e quando menos esperamos,
estamos cansados e desanimados com a repercussão de uma notícia ou outra. Eu me acho, então, incrivelmente mais só.
Agradeço, portanto, a todos os que
se manifestarem nesta discussão. Quem sabe o blog nos dá suporte para outras
conversas, menos mascaradas.
No meu país de origem, o Brasil,
artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e
Roberto Carlos, muito diferentes uns dos outros, puseram-se francamente contra
a veiculação de biografias não autorizadas pelo biografado. Fizeram pressão
para inviabilizar a publicação desse tipo de livro, de que eu gosto bastante e
que, feito com seriedade, deve dar muito trabalho ao escritor.
Ao primeiro do grupo, Caetano
Veloso, foi direcionada uma carta aberta, como tentativa de fazer um contraponto
e chamar à realidade, sim. O autor da carta é Benjamin Moser, autor também de
uma longa biografia de Clarice Lispector que eu comentei neste blog. O texto
dele para a Folha de S.Paulo saiu em
09 de outubro de 2013.
Salta aos olhos que esses figurões
da música brasileira, acima da média em termos de realização artística, façam
justamente o contrário do que se busca hoje na própria arte. Pois pelo menos as
HQs/BDs, com que eu lido profissionalmente, estão voltadas para a exposição de
biografias feitas com muita sensibilidade e muito labor. A mim não importa
muito que sejam feitas a partir da decisão pessoal do biografado ou não. Trazem
histórias, o resto é conosco.
Li durante o último julho Persépolis e Fun Home, respectivamente de Marjane Satrapi e Alison Bechdel. Li e
recomendo.
A primeira autobiografia é uma
delícia, uma vez que está lá uma boa dose de crítica refinada sobre as pequenas
e as grandes decisões da adolescência, representadas, por exemplo, numa
sequência de vinte e duas pequenas imagens da metamorfose física de Satrapi, no
período que ela viveu na Áustria.
Ela nos contou que fizera muito
para encobrir as mudanças do corpo, até perceber que, se a mudança agradava ou
não a quem tinha uma cultura diferente da dela, azar! Ela precisava se assumir
e andar satisfeita com a boa receção, vinda de colegas austríacos de quem ela
menos esperava admiração.
A autora também não abriu mão do
direito de falar de seu país, o Irã/Irão. Questionou formas de educação,
mostrou o valor que as boas relações familiares têm, alfinetou de maneira
inteligente pessoas com as quais conviveu, enfim, compôs um álbum gráfico sem castrações
(visíveis).
Ao ilustrar uma parte da sua
educação formal em Belas Artes, contou que as aulas de desenho do corpo eram
dadas sem modelos nus à disposição do grupo de alunas e que, por isso, feitos
todos os esforços de observação, restava-lhes a habilidade para retratar as pregas
das roupas, sem a menor possibilidade de aprender a desenhar membros!
Fiquei com a leitura, talvez
equivocada, de que ela teria escrito e desenhado Persépolis porque descobriu que se
integrar requer muita consciência, bons ouvidos, humildade e uma constante busca
pelo melhor na nossa vida.
Não me parece uma descoberta
fácil nem generalizada. Vale a pena partilhá-la, sem dúvida.
O livro de Alison Bechdel, por
seu turno, é muito mais denso. As relações familiares, tópico do livro, eram
presas, tristonhas, cheias de segredos que faziam com que a auto-afirmação fosse
tarefa mais dura, só levada a cabo com sucesso porque naquela família a
criatividade era uma marca, uma meta.
Mas a leitura de Fun Home é, na mesma, muito
enriquecedora. Vale a pena por causa das muitas referências à literatura de
ficção, vale a pena pelo final, comovente, pelo traço da desenhadora/desenhista.
Dito tudo isto, quanto eu lamento
pelo momento que o Brasil passa! Finalmente existe maior estabilidade
financeira, mas ela nem de longe se transforma em um rápido crescimento cultural
no seu sentido mais pleno!
De longe, não é isso que se
observa. Representantes tão conhecidos e tão valorizados quanto os músicos já
mencionados aqui nadam contra a corrente. Livros com seu contributo, por que
não, como Christiane F., são
recebidos como se o único parâmetro de avaliação (e é preciso, mesmo, fazer comparação fora da escola, na qual ela tem efeitos didáticos?) fosse uma obra recente, como a da auto-intitulada
Bruna Surfistinha, que eu arrisco dizer que não foi assim tão lida…
Será que as classes média e alta
brasileiras não vão ter, nunca, espelho que revele o quão limitadas e
limitantes são?
Quero saber dos meus ex-alunos a
lerem e lerem, sem restrições, porque se recusam a ficar pelo mínimo ou pela opinião
comprada aqui e ali.
Quero menos rancor, menos
interesse pelo que de dinheiro circula, quando esta ou aquela obra chega ao
mercado.
Quero mais recursos para lidar
consigo e com o outro, e esses recursos a arte dá, mas temos que nos apresentar diante
dela com boa vontade e algumas armas, para escapar daquilo que Alberto Manguel, muito sabiamente, tem chamado "A Idade da Vingança", isto é, a nossa era!