Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


sábado, 26 de outubro de 2013

Menina, menina (com o dedo em riste!)

Encontrei outra disposição e outros sentimentos. Obrigada.
Com energia oscilante, você sabe, tenho procurado um mundo.
Talvez eu seja menos prudente, meu amigo. Minha energia tem-me levado a procurar quem tem calma para perder-se e encontrar-se, neste mundo, até o fim.
Não ria de mim, por favor, se não me abandonou até agora não ria! Os amorosos andam por aí, eu só preciso descobri-los.
Mas ainda ontem eu voltei ao velho padrão e, em seguida, dei o mais recente telefonema a pedir socorro, sem apresentar um porquê muito claro. Quero pintar melhor o retrato da cena, conhecendo o tamanho da sua paciência para comigo.
Eu estava cercada de crianças. Falavam alto e o som era tão agudo, que só me ocorria pensar numa explosão. A irritação foi física, acredite, parecia uma alergia. Eu poderia atribuí-la agora à poluição do ar. Se eu quisesse esconder-me de mim e de você é o que eu diria, mas já reconheço este meu mundo fechado quando nele estou, mais uma vez, quem sabe a derradeira.
Foi uma reação muito humana, temos trabalhado arduamente como humanidade para acumular queixas e aumentar culpas.
Mas o ponto foi ganho ao final da partida, seja como for, pois eu não explodi! Nem elas. Vê como há esperança?
Numa outra etapa, quando eu já me comunicar melhor com quem dá-me mimos, direi que podemos pensar de maneira diferente, mas somos parecidos, queremos nos defender de qualquer agressão e então também nos defendemos de um comportamento legítimo. Direi, por fim, que não adianta fugir, uma hora os outros acertam e nós, nós estamos errados.
Só agora observo que não fiz uma única pergunta àquele grupo de crianças! Será que realmente me interessam, Salvador, as pessoas interessam-me?
A você admito que a leveza faz-me falta nos momentos de tensão. Porém, entender nunca é suficiente, continua-se a errar depois que está tudo mais claro, de acordo?
Oh não, Salvador, e eu não esqueci do nosso acordo. Vou contar meu sonho da madrugada que antecedeu o embaraço e o telefonema, pois estive monossilábica contigo. Enfim, foi justamente antes do deslize que o sonho aconteceu.
Sonhei com meus dentes partidos, a gengiva a sangrar, e quando vi o realismo do machucado no rosto de alguém (porque então parecia ser o rosto de outra Maria), a cena me incomodou demais. Temi estar prestes a cair, entretanto não imaginava nem o passo em falso nem as consequências, imaginava o impacto da boca na quina, a boca que eu deveria ter mantido mais fechada por algum motivo que virou névoa durante aquele pedaço do sonho. Mesmo assim insisti em subir escadas, em sustentar-me um instante nas beiradas. Podia cair, podia não conseguir proteger-me, um estrondo no meio da normalidade, mas eu continuava em movimento. Alguns julgavam que estar parada era uma afronta à normalidade. E eu não sabia o que fazer em nenhuma daquelas cenas do meu filme, Salvador.
Não foi por acaso que hoje de manhã cedi, como se vê. Cedi após ter suposto que tinha as rédeas nas mãos, a controlar o meu cavalo e a tropa toda.
Aparentemente, só acordei naquela sala improvisada, quando ouvi o eco das minhas palavras descontroladas e sem sentido, ferindo o ouvido dos outros.
Saí de lá sendo o eu que menos desejo encontrar por aí.
Diga-me, porque eu preciso sair para caminhar: qualquer um teria reprimido a bagunça, para conter o ímpeto daquelas criaturas? Quando é que, nesse toada das responsabilidades e dos atalhos até uma solução, uma pessoa se esquece de ser tirana?
O sorriso contido de uma menina numa das cadeiras da frente mostrava-me um lampejo de satisfação, enquanto eu tentava disciplinar o caos e me reencontrar. Ela já sabia de tudo.
Até parecia ter esperado aquela minha reação. Pode ser que não tenha forças para falar. Uma menina desajeitadamente obediente, que se tinha feito notar uma três vezes desde que eu entrara para substituir a professora de História.
Conservou a boca um pouco aberta, como se estivesse a dizer exatamente o que eu dizia com o dedo em riste, no final do sermão: silêncio.
Não era muito mais o que ela pedia. Um pedido de cada vez, ensinou-me a menina. Pudera, ela descobriu-me primeiro e não precisou buscar-me no fim do mundo.