Com que cara o mundo dos
concursos de culinária, transmitidos pelos canais de TV a cabo, olha para mim
quando eu o espreito?
Não me refiro aos bastidores, que
eu posso conhecer mais ou menos ao aceder ao Google sem fazer muito esforço… e
sem avançar muito na apreciação da coisa toda. Refiro-me às cenas de preparação
dos pratos e seus comentários técnicos, que depois se desdobram em algum tipo
de cultura, já que muita gente compartilha receitas culinárias, compra revistas
para experimentar petiscos (e mais uma maneira de fazer bacalhau), acompanha esses
concursos televisivos, escreve guias de restaurantes, dá orientações de nutrição
nas farmácias, cria blogues sobre decoração de festas e por aí afora.
Por que os cozinheiros amadores
se expõem da forma como os vemos nas cenas de TV?
Como sentem-se os chefs, com a aura que as emissões desses
canais pagos ajudam a cultivar?
As reações dos primeiros, quando
eles acabaram de se esforçar numa sobremesa que precisa ser agradável tanto
para eles quanto para os chefs,
mostram sempre as fragilidades que eles têm. Eles transpiram, emocionam-se, levam as
mãos à cabeça e até confessam erros, preferências pessoais e desafetos no
concurso (se estivermos a falar da versão dos EUA, na qual esse último aspecto
é francamente valorizado).
O refinamento que os chefs buscam (e que alguns amadores ingleses,
por exemplo, não entendem como uma meta fundamental de um cozinheiro) tem que
ver com o uso de ingredientes incomuns, ao que me parece. Eu, ao menos, não
conheço uma porção de nomes que vejo nas legendas em português: “pastinaga”, “bérberis”,
“ume”, “galanga”. Entre eles, já percebi que muitos têm que ver com a forma de
cozinhar e são repetidos no idioma original, sem tradução: “jus”, “confit”, “velouté”, “sabayon”. A pose que os chefs ostentam, acho que eu já conheço.
Pois os moldes desses concursos
culinários são parecidos com os de um reality
show, na verdade é como eles estão classificados, mesmo. Para mim, é aí que a diversão diminui um pouco. O que parecia um
mundo a que eu nunca estive muito atenta, mas que hoje faz lembrar a família e
os dotes transmitidos, a família e os seus sabores, aromas, encontros, afinal
soa como um mundo muito encenado, dramaticamente perigoso e pouco acolhedor.
Uma das temporadas do MasterChef que eu acompanhei teve como vencedora uma
concorrente encantadora, com uma deficiência visual, e como segundo lugar um
rapaz que parecia muito tenaz e que há poucos dias faleceu, no que a imprensa norte-americana
falou em suicídio e em um transtorno bipolar. O climão do programa terá, de
algum modo, exacerbado uma tendência aos extremos? Não sei, mas ficam a dúvida
e o pesar. Era um rapaz muito novo, muito simpático, e a temporada foi dura,
cheia de intrigas.
Nas edições norte-americanas do
MasterChef, por sinal, a marca desse tipo de entretenimento é mais evidente. Os
concorrentes falam para as câmeras uns sobre os outros, num cenário lindo de
morrer, e regularmente ouvem tanto o elogio quanto a provocação meio mal
educada, vinda dos chefs e de alguns convidados, que até se dão ao luxo de chamar um prato de ridículo, se não o consideram suficientemente sofisticado. Não sei se
noutras edições, como a inglesa (que é a mais antiga, tanto quanto eu apurei, tendo começado em 1990), os concorrentes e seus chefs são mais equilibrados de verdade ou se é a questão da exposição
que os atinge de outra forma, por isso ela é administrada de outra forma também.
Enfim, pode ser que nem lhes interesse criar uma personagem de sucesso e andar
a sustentá-la desafio após desafio, episódio após episódio, porque isso
provavelmente faz perder o foco no desempenho como cozinheiros e eles são concentrados, basta ver a narração do programa, tão linear, tão monótona e quase engraçada por isso!
Quanto às tarefas que os
concorrentes enfrentam, há as propostas com um prazo, as propostas com um tema, propostas com uma “caixa
mistério”. Gostei de ver, no MasterChef UK, a ida dos concorrentes a
restaurantes conceituados, já na condição provisória de cozinheiros profissionais.
Eles receberam orientação na cozinha, viram demonstrações, tiveram a oportunidade de sentir
na pele como é o dia a dia no ramo. Ficaram estafados, tiveram pequenos
acidentes, como queimaduras nas mãos, puseram à prova a capacidade de obedecer
e a de liderar, de responder e de controlar os nervos. Umas vezes serviram gente
muito rica, acostumada à boa comida (e houve vários comentaristas dos jornais ingleses a criticar o esnobismo dessa opção), noutras vezes serviram estudantes que
apreciam sempre os mesmos pratos, pratos comuns como frango e arroz com
ervilhas. Neste caso eles estavam numa escola indiana, pressionados pela
responsabilidade de cozinhar enormes quantidades de comida e servi-la
quente, suculenta e bem condimentada.
Fui tocada pela ideia do controle
dos nervos, especificamente, quando um concorrente habituado a complicar o
menu, digamos assim, diminuiu um pouco a exigência e passou um desafio inteiro a
lidar com a sobra de tempo. Ele disse a rir que estava um pouco surpreso com o efeito
da calmaria! Mas depois eu vi que esse era um concorrente que
vivia no campo, que criava suas galinhas etc, e que talvez já pudesse ter
experimentado a ideia de sentar em cima do momento e reinar, e celebrar o
auto-controle, a boa disposição que vem da prática sossegada e realista de um
prazer saudável, de um hobby a que podemos ter direito. Pergunto-me,
sendo assim: só dentro de casa é que a gente consegue essa proeza de não entrar
em parafuso com as expectativas auto-impostas? Não sei, mais uma vez eu não
sei responder. Meu orientador de doutoramento uma vez afirmou que nossa época é tão, mas tão
presa, tão menos livre do que pensa que é, pois nem para que um fulano abdique
do cigarro, por exemplo, existe grande chance de êxito! Se não estou em erro,
ele comentava o livro A consciência de
Zeno.
Mais para a frente, nesse mesmo programa
do concorrente agitado e muito novinho, ouvi falar da importância de ir provando a receita
gradualmente e de ter a bancada de trabalho organizada e voltei ao mesmo: onde
é que, hoje, nos ensinam a ter serenidade, equilíbrio? De novo e de novo ela é
solicitada, ela faz bem, sem dúvida que faz, e não a vemos na escola, não a
vemos em família, necessariamente, não a vemos nas ruas, definitivamente. Há
que acordá-la de dentro de nós, sem barulho, para que no mínimo algumas tarefas
sejam cumpridas com paz de espírito? Para quem, como eu, emociona-se demais, é
difícil! A parte da organização, ok, tiro-a de letra! Quanto a estar imune ao
burburinho, bem isso custa…
Deve ser por aí, também, que se
alinham os comentários dos chefs
acerca de comida simples. Para mim, mera observadora, observadora recente, são
comentários ligeiramente contraditórios com aquele outro pedido deles, já
referido neste post (pelos
ingredientes invulgares, pela apresentação impecável, criativa), mas têm o seu
interesse. Como no filme de 2007,
Ratatouille, em que o crítico mordaz só se rende à recordação familiar de
um prato de beringela com tomate, abobrinha/curgete, pimentão/pimento e certos
temperos. Que delícia de filminho, que prato de dar água na boca, se a gente
cresceu acostumado a ser servido, em casa, com carinho e com algum elemento da
tradição. Na minha família, esse lugar era o do frango com polenta, posto à
mesa com umas fatias de queijo por cima, que então víamos derreter quando enfiávamos a colher para nos abastecer. Era o lugar da
canjica e do arroz doce, do nhoque, meu Deus, preparado pela minha mãe e pela minha avó
com delicadeza e molho de tomate caseiro… Era o lugar das esfirras, influência
da família de uma tia com outra origem.
Termino então a minha incursão
com essa nostalgia do bom e do caseiro e com mais uma.
Vivo em Portugal faz pouco mais de sete
anos, já o disse em vários posts, aprendi
a gostar de muitas receitas locais, como a massa a lavrador, e não deixo de me sentir mal com o desprezo
pelo que há em nós de acolhedor e de estável, quando me dou conta de que, no
Brasil, lugar da minha cultura de origem, pouco do que eu falei neste texto
faria sentido.
Só mais um pouco de fôlego, eu peço, para estas questões: reunir concorrentes de diversas partes do país e não recorrer ao
riso fácil, para fazer de conta que está tudo bem entre conterrâneos? Falar em pratos cuja criação
está balanceada? Rituais, tão caros à culinária, para quê? Herdar habilidades e
cuidados familiares na alimentação e no convívio, para quê? Ver televisão e com ela abrandar, para quê?
Valorizar o regional ao mesmo tempo que o estrangeiro, o atual ao mesmo tempo o
antigo, para quê?
Tanta gente disposta a agredir, a julgar, a misturar
qualquer assunto à política, a rir e não a sorrir… assim, não há como fazer uma refeição em paz! Não
há como admirar em paz, sem deslocar esse ou aquele grupo
para um canto, de maneira brusca, por incapacidade de ouvir e de ponderar. Tudo é uma bomba lançada contra a sua certeza individual.
Um pouco mais de inocência, vamos
lá, temperada com muita prudência, pois o tempo que passa não envergonha
ninguém, passa para ensinar e para enriquecer a cultura e não para dizer que esta é a
hora de romper com tudo, pois nada presta. O Brasil é um mundo novo, mas se queremos de verdade chegar a ter voz e a ter orgulho, penso que só com pratos limpos.