Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Adeus Tristeza

A HQ/BD Adeus Tristeza, de Belle Yang, conta as idas e vindas da família do pai dela, entre Taiwan, China e Estados Unidos da América. A edição que conheço é da Companhia das Letras e foi publicada em 2012. O original é pouco mais antigo do que isso, data de 2010. Eu li a HQ em novembro ou dezembro do ano de 2013, reli agora, passado um ano.

Agrada-me mostrar, em algumas linhas, o modo como a autora assume o comando da narrativa, mostrando assim como uma autobiografia pode recompor elos importantes com o núcleo familiar. Não sei se em toda e qualquer autobiografia existe esse compromisso de antemão, isto é, não sei se ele existe por definição, mas para mim é um dos elementos que se pode ver com carinho no livro em questão.

O anúncio das intenções da narradora é feito da seguinte forma: "Você pode me contar mais da nossa família na Manchúria, Baba?” (p.13).

Prosseguindo nessa linha, ela afirma: “Eu amo as histórias de baba. Eu quero poder dar voz às pessoas que foram esquecidas. Ovo Podre me calava com os punhos quando eu discordava. O governo chinês cala seus cidadãos com tanques. Eu tenho voz na América.  Não vou jogar isso fora” (p.35).

E confessa-se, mais de uma vez: "Sinto muito que vocês tiveram que sofrer por mim" (p.66); “É, eu fui mimada” (p.182).

Questiona o pai, narrador da maior parte dos acontecimentos, “Baba, você teria saído de casa se soubesse que a viagem seria tá difícil?” (p.186).

E eles avançam na reflexão proposta por ela: “Teria deixado a Manchúria se soubesse que minha jornada seria tão difícil? Não, certamente que não!”. “Baba, e se você soubesse que teria uma bela família, e que acabaria na América, vivendo tranquilamente perto do mar?”. “Aí a resposta é SIM!”. (p.188).

Quem vai acompanhando o modo como ela e a mãe ouvem esse pai, sabe que é coerente que ela reconheça: “Não é tarde demais para eu conhecer meu pai” (p.195); “Eu nasci em Taiwan enquanto as pessoas no continente passavam fome” (p.226)


Ir buscar a história dos seus ancestrais não é ir longe demais, é ir até o lugar em que um tipo de verdade está, se a relação com o pai e consigo mesma ajuda a "apagar a tristeza da vida de Baba” (p.242)




terça-feira, 18 de novembro de 2014

Outra Patrícia Galvão, já que nela houve muitas














CANAL


Nada mais sou que um canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal
Sabem vocês o que é ser um canal?
Apenas um canal?


Evidentemente um canal tem as suas nervuras
As suas nebulosidades
As suas algas
Nereidazinhas verdes, às vezes amarelas
Mas por favor
Não pensem que estou pretendendo falar
Em bandeiras
Isso não


Gosto de bandeiras alastradas ao vento
Bandeiras de navio
As ruas são as mesmas.
O asfalto com os mesmos buracos,
Os inferninhos acesos,
O que está acontecendo?
É verdade que está ventando noroeste,
Há garotos nos bares
Há, não sei mais o que há.
Digamos que seja a lua nova
Que seja esta plantinha voacejando na minha frente.
Lembranças dos meus amigos que morreram
Lembranças de todas as coisas ocorridas
Há coisas no ar…
Digamos que seja a lua nova
Iluminando o canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças

Sou um canal.


O poema é de 1960. 

Apareceu em "A Tribuna", jornal da cidade de Santos.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Alguma poesia de Patrícia Galvão

NATUREZA MORTA


Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, bein? a ave na parede
96Mas conservaram os meus olhos
O verdade que eles estão parados.
Como os meus dedos, na mesma frase.
As letras que eu poderia escrever
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!
Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo,
Os namorados passando, passeando,
Os ventres estourando
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!
Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!
Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Si eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém...

Nem a presença dos corvos.



Da apaixonada, incansável e inquieta Patrícia Galvão, que Raul Bopp um dia chamou "Pagu".
Escrito em 1948, esse poema apareceu também na biografia organizada por Augusto de Campos, em 1987. É o texto da página 168.

sábado, 15 de novembro de 2014

Mari, a minha filha única, até o momento



Eu hoje tive um livro lançado entre amigos (http://loja.atitudeterra.com.br/pd-16da3b-mari-pre-venda.html?ct=5764e&p=1&s=1).
Um livro feito também ele com uma amiga. Mari, o livro, Filomena, a amiga. Muito prazer.
Foram bons pra comigo os amigos de lá!

Por causa de todo o processo eu me vi com umas lentes um pouco mais fortes do que é habitual em mim usar: foram captadas imagens para o vídeo apresentado na sessão de lançamento e eu me descobri calma ao gravar; foi feita a divulgação e eu tive receio de estar pressionando os convidados (hehe), mas tentei falar assim mesmo com quem eu me lembrava de falar, pois queria ver essas pessoas online.


Eu não fui à festa. Como também não tive festa de formatura, nem lá nem cá... Paciência.


Os dias têm sido longos, frios e exigentes.

Os projetos, altos e ao mesmo tempo bonitos.
Voltei a corrigir textos extensos para outras pessoas, voltei a escrever os meus textos, parados até que Mari saísse do forno. Voltei a pesquisar e a me apresentar em público.  Mesmo tendo sido quase um fiasco, eu estive a olhar para o público que me via titubear.

Não é à toa que o blog foi posto para dormir um pouquinho.

Voltas e mais voltas, eis-me aqui e, como diz meu lindo sempre lindo Gonzaguinha:

"É viver e aprender
Vá viver e entender, malandro
Vai compreender
Vá tratar de viver

(...)
Se é pra ir vamos juntos
Se não é já não tô nem aqui"

sábado, 7 de junho de 2014

Parecem dois mundos completamente apartados, mas a importância dos filhos os une

Eu hoje estive a ler sobre Patrícia Galvão, a Pagu, mulher que o pintor Cândido Portinari pintou, dado o fascínio que ela exerceu nos artistas durante o Modernismo brasileiro.


Não é propriamente uma mulher desta nossa época, em que parecemos fantasmas e lutamos para mudar essa condição, enquanto ela se alastra, desgovernada.
Se contraponho a energia dela à minha época em particular, é porque Pagu fez de tudo um pouco ao longo da primeira metade do século passado e ainda encontrou disposição para confessar aos filhos, numa carta, o quão tumultuada se sentia
Não deve ter sido fácil agir no tempo dela, e ela parece ter agido incansavelmnte porque sentia que era o melhor a dar. Para se ter uma ideia das tarefas de que ela se incumbiu ou as que não pôde evitar: passou por mais de um aborto, escreveu panfletos de cunho político e os distribuiu, candidatou-se a deputada estadual, foi presa mais de vinte vezes, foi torturada, viajou pelo mundo, travando contato com Freud, Borges e estrelas de Hollywood, escreveu sobre teatro, poesia, televisão, mudou de partido político, fundou jornais e viu o encerramento controverso de alguns deles, tentou o suicídio, teve vários pseudônimos como escritora de ficção, desenhou  para a imprensa e fez HQ/BD etc. 
Já tendo conhecimento de parte da história de vida dela, admito que, depois de ler com calma alguns artigos científicos, fiquei emotiva.
A perturbação que ela parece ter sentido relativamente aos filhos é por mim compartilhada talvez em maior grau do que as outras, pelo menos neste momento da minha vida. Considero tão difícil obsevar um filho, tão delicado o equilíbrio entre os nossos medos e sonhos e os deles. Imagino que simplesmente não exista preocupação maior do que estar à altura de um filho. Pagu, que trabalhou arduamente, sentiu que devia explicações aos filhos; eu, que falo demais com o meu, seja pela tentativa de advertir, seja pela admiração que ele causa em mim, tenho algum receio de não ser capaz de reconstruir aquilo que julgo ser o mínimo que ele merece.
E o que um filho nosso merece? O melhor, o que nem precisa de definição, de adjetivação, pois certamente é divino, é a perfeição na terra. Olho para o meu filho e diante das possibilidades que nele por ora não estão consolidadas, pergunto-me se saberei agir bem, se saberei acompanhá-lo, eu que sinto em mim menos presença de espírito do que em Pagu.
Muito bem, imersa nesse nível de considerações que eu aqui expus de leve, não sei se para fugir ou para deixar respirar encontrei um filme na Tv paga - essa miscelânea que tanto pode oferecer qualidade quanto quantidade, sem constrangimentos de nenhum tipo.
Vi The shipping news, obra também ela acerca de filhos e de realização pessoal.


O filme tem quase quinze anos. Tem Julliane Moore (que a meu ver não precisa da silhueta elegante nem de quaisquer adereços para ser feminina), cuja personagem forma um par romântico credível com a personagem de Kevin Spacey. Ela faz e ele faz por isso, igualmente. São figuras que se assemelham na medida em que estão ambas sozinhas, depois de péssimos casamentos, e têm filhos pequenos "esquisitos"; diferem porque ela já encontrou aquilo em que é boa (está à frente de uma escola infantil num lugar remoto), ao passo que ele não teve autoestima suficiente para arriscar um bom desempenho num ofício qualquer; ela já saboreou a generosidade familiar depois de um trauma, ao contrário dele que está às voltas com a descoberta das suas origens.
Mais segura de si, ela ampara o filho. Menos confiante, ele também ampara a filha. Até que um cresce num aspecto, outro cresce noutro, e da convivência natural surgem o desejo e a cumplicidade, e saem todos a ganhar. Ela já é capaz de ter vida íntima outra vez, ele já é capaz de receber apoio, o filho dela tem finalmente uma amiguinha, a filha dele tem finalmente ouvintes. 
Por qual motivo o filme me manteve desperta até o fim? Por que o associei à vida de Pagu?
Nâo apreciei a forma como a narrativa foi rematada na versão para o cinema. Parece que a sensibilidade, as variadas buscas pessoais, todas as muitas tarefas difícies enfrentadas por um e por outro foram esvaziadas, quando a personagem de Kevin Spacey se mostrou mais leve, no estilo "eu nunca imaginei que um homem com o coração destroçado pudesse recomeçar, e essa é a lenda de um recomeço possível"... O filme é o resultado da adaptação de um romance premiado e há sempre quem penalize as tentativas de mudar a linguagem de uma obra de valor reconhecido. Contudo eu não li o romance, por isso não fiquei incomodada com o filme nesse sentido. Foi a voz que sublinha a vitória da personagem que me desagradou,o tom dessa voz, como se ela retirasse a verdade que com um determinado ritmo o filme construiu. Foi como se essa forma de encerrar o filme desvalorizasse as cenas anteriores, o esforço anterior.
Patrícia Galvão, a Pagu, foi muitíssimo mais eloquente como narradora da sua própria vida. Mas ela não foi personagem, foi agente. As personagens, no filme, estiveram quiçá à altura de uma composição, do que uma escritora e um cineasta/realizador conceberam para elas. Nunca é a mesma coisa. 
Com boa vontade e com coração aberto, medidas as diferenças de alcance, apetece-me dizer que os filhos são caros, não são troféus, não são ideias, são o que de mais real pode existir e a suspeita de não ter como oferecer a eles um entorno saudável é de amargar, enquanto não superamos o nosso trauma pessoal. Terei a capacidade de garantir-lhe um lar bonito, como a personagem de Julianne Moore garantiu? Terei a lucidez de me ver como sou, como Pagu se viu, a fim de me corrigir e ser o melhor para ele? Terei uma mão segura para segurar a mãozinha dele, como custou à personagem de Kevin Spacey ter? Terei palavras para me desculpar pelas opções confusas, palavras que não precedam o erro, como estas de hoje?  
As perguntas são tão grandes, homens e mulheres precisam ser tão fortes, que se leva às vezes um filme inteiro a formular perguntas e a responder perguntas - ou uma vida inteira, que depois a gente espreme numa carta emotiva, se tiver o dom da palavra.


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Avós

A lua e o sol, nesta ordem, e depois o sol e a lua, para finalizar.
Tudo se vê uma vez e depois outra, com olhos mais abertos, no livro de Chema Heras e Rosa Osuna, Avós.
O casal que conversa à frente do leitor tem um próposito - falar de um baile - e toda nova informação que um dá, o outro traduz, por assim dizer, tornando-a mais doce, mais apurada.
Pequenas pausas são vistas apenas no início e no final da narrativa, uma delas quando o avô ouve a avó dizer que já não é uma "menina, para andar de festa em festa" e olha para o sol, antes de colher uma margarida e oferecê-la à mulher.
A partir daí, se a avó se define como "uma galinha sem penas", o avô protesta, corrigindo: "Não digas isso, mulher! Tu és bonita como o sol!"
Ela no entanto continua a manifestar desgosto com a sua própria imagem, reprova os olhos que tem, os cílios/pestanas, a pele, os lábios, o cabelo, as pernas mas, por fim, põe todos os artifícios de lado (lápis, pincel, creme hidratante, baton, tinta, saia), lava o rosto e sorri para o avô.
A lista do avô também cresceu: os olhos dela não eram "tristes como uma noite sem lua", eram "tristes como as estrelas da noite"; os cílios não eram curtos como "as patas de uma mosca", eram antes curtos como "erva recém cortada"; a pele não era "enrugada como figo seco", era enrugada, sim, porém como "as nozes de uma tarte"...
Tudo conforme a idade. Tudo bonito, mesmo assim, ou até por isso mesmo. Bonito e natural.
E depois que a avó se deixou convencer da sua beleza, eles puderam dar os braços e caminhar até o baile onde ela, sábia, olhou o avô também, fazendo ela própria a sua pausa, a segunda pausa do livro. O que descobriu durante a recaptulação das qualidades que o companheiro enumerava enquanto a olhava?
Só podia ser beleza. Então ele ganhou igualmente uma margarida e os dois puderam dançar no baile.
Da minha parte, um pequeno pequeníssimo desejo: fiquei encantada com a ilustração que mostra o casal idoso e o seu entorno, a visão dolorosa e a visão generosa, as plantas, os animais e o céu, as cores mais apagadas realçadas aqui e ali pelo amarelo do sol, mas quando li para o meu filho o trecho em que a avó colhe a margarida, pensei que a florzinha iria parar atrás da orelha do avô... Não, ela foi posta pela avó no casaco do avô, ok. A avó não a amassou, pois se aconchegou do outro lado do peito dele, de acordo com a Rosa Osuna, ilustradora... tudo bem, então. Mas acho que um avô, um homem tão terno merecia uma flor simetricamente disposta como a da sua mulher, a avó, pois eles são um para o outro um espelho maravilhoso, que o meu elogio neste post é insuficiente para mostrar.






sexta-feira, 18 de abril de 2014

Ver televisão

Doraemon, o gato que conhece a tecnologia do século XXII, ajuda a família que o abriga, tirando do bolso apetrechos (uma máquina que ou recupera ou antecipa cenas, quando apontada para o local delas; uma recriadora de objetos que trabalha a partir de fotografia; um adesivo que previne acidentes). Da 1ª vez que ouvi uma referência à origem dele no tempo e ao trunfo que ele tem, gargalhei!
Era justamente o episódio do adesivo-talismã, objeto que Doraemon oferecia ao pai do seu amigo Nobita, como garantia de integridade física durante a escalada de uma montanha. Nobita tinha que experimentar o adesivo antes de o pai praticar alpinismo, para ter a certeza de que estaria realmente a resguardar o pai de acidentes. A curiosidade que sustenta o desenho animado se desembrulha nas situações em que o Nobita se mete, ao testar o adesivo: foge da mãe, com sucesso; corre do colega maior do que ele, o Gigante; evita uma nota ruim numa prova da escola etc. O adesivo é bom, afinal! E claro que ele irá proteger o pai do Nobita... Até a mãe do Nobita, mais alheia ao Doraemon, acaba por acreditar na oferta vinda do século XXII.

Por que eu gosto do desenho animado? Não sei muito bem! Nunca o tinha visto quando era adolescente, pelo menos não me lembro nem vagamente desse desenho japonês. Acho que eu não acompanhei nem um único desenho japonês nessa fase da minha vida, a adolescência.
Hoje há muitos desenhos animados japoneses na TV: Kilari, Hamtaro, Zorori etc. Não são os preferidos do meu filho, por exemplo. Ele os vê comigo meio a contragosto ou porque está acomodado com os brinquedos no sofá da sala, "à minha beira", como ele diz. Gosta mais de uns desenhos italianos que para mim são quase feios e têm personagens com umas vozes roucas, grossas, para parecerem masculinas. Ou então vê uns adaptados dos jogos eletrônicos; lembro de um desenho espanhol e de outro francês que se enquadram nessa definição sem pretensões. Nenhum deles me atrai, o exercício de imaginação a que eles convidam, sinceramente, dá-me sono, preguiça: esta personagem tem o poder não-sei-das-quantas, a outra é um elfo assim assado, num ambiente X/Y/Z usam o poder para... Existem outros de que nem ele nem eu gostamos: animais retratados em família, dentro da qual um membro comporta-se como líder inquestionável, pois está cheio de habilidades, tem carisma etc. Os sites que reúnem informação sobre esses últimos enfatizam o sucesso que os livros e as ilustrações neles já fizeram, razão pela qual o desenho animado para televisão nasceu. Não costumo me ligar às propagandas, por isso essa que apela para a ilustração bem cotada pouco significado tem para mim. O mercado infantil movimenta as livrarias, como é sabido. Nada que ver necessariamente com qualidade, com verdade. Poemas movimentam menos o mercado editorial, contos, idem. Encontram-se poucos bons livros de crônicas para comprar, poucos romances históricos bem feitos. A literatura infantil tem seu espaço, o que dizem é que ela dá as cartas, hoje. Nada estranho, então, que um livro passe à televisão porque vendeu bem. É uma questão de consumo, não de responsabilidade quanto ao bom desenvolvimento das crianças que entram em contato com determinado livro, determinado desenho.
Assim sendo prefiro o Doraemon, que do pensamento passa à ação, onde a criança está.  Não sei se ele representa o Japão ou não, mesmo tendo a informação de que ele já foi escolhido para símbolo nacional lá, com essa justificativa. Não sei se posto em papel, ele vende muito ou pouco. Gosto de continuar em paz enquanto o vejo. A mim parece uma realidade menos distorcida do que a de um jogo, uma reprodução do modelo humano, para os animais etc, embora ele, um gato, coma muitos bolinhos de que as crianças gostam. Nenhuma conclusão bombástica, só calmaria...


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Into the wild

There is pleasure in the pathless woods,
There is rapture on the lonely shore,
There is society where none intrudes,
By the deep sea and the music in its roar;
 
I love not man the less, but Nature more.
 
Lord Byron
1º semestre do ano de 1990.
Começa uma travessia de muita reflexão e de conclusões ou cegas ou mal iluminadas, ou desesperadas ou as possíveis para um jovem cheio de variadas capacidades e muitas feridas!
Alexander Super-Tramp, às vezes simplesmente Alex. Nomes que ele se deu, partes da identidade que ele viveu para contar uma história a que tinha direito.
Ele era um recém-licenciado que saiu de carro do lugar onde estudava, para chegar ao Alasca, sua terra prometida.
Ele não tirava da cabeça o que vivera na casa dos pais; ele colocava insistentemente na cabeça o que encontrava nos livros, bons livros por sinal. De todo modo, apenas livros...
Mochila nas costas, ele passou a viajar a pé a partir de um certo ponto, experimentou caçar e experimentou pôr-se num caiaque para descer um rio a que não estava habituado. Caiu noutro rio, de correnteza forte e teve medo de ser levado pela força das águas.
Sentiu um frio extremo, teve fome, subiu em vagões sem pagar pela viagem, desceu deles sem avisar.
Expôs-se ao risco, enfim.  Porque estava escrito que o homem tem que arriscar e tem que ir ao mundo selvagem, a fim de dar o seu recado a um mundo hipócrita.
O que ficamos a saber enquanto vemos o filme Into the wild, que recompõe essa travessia verdadeira, provavelmente não esteve bem formatado aos olhos do seu protagonista real, Christopher Johnson McCandless. Pois ele estava a aumentar a distância entre os pais e ele - pais que se agrediam física e psicologicamente, pais que exigiam demais dele e da irmã dele -, sem terminar de entender que, no caminho, outras figuras mostraram de bom grado o quão difícil é ser pai e mãe, o quão difícil é perder um filho que não deixou pistas, o quão difícil é perdoar e levar uma vida de carne e osso, para além da sabedoria que nos chega pelos livros, e que deve chegar, digo eu de propósito, mas não para varrer nossos elos com o mundo que temos.
Ele ouviu conselhos, ele chorou com os amigos novos e com eles riu, também. Sempre foi escrevendo nos seus papéis o que pensava da vida, o que aprendia na prática e com a leitura, até a máxima que assusta o espectador do filme, tão dura e tão má de contrariar que ela é: a felicidade só é real quando é compartilhada. No momento em que ele descobre isso, está a morrer, e a luz se faz para ele. O filme de Sean Penn dá a esse clarão a luz do sol, mesmo, vista da janela de um moribundo a verter lágrimas e a se pôr direito para o fim.
2º semestre do ano de 1992.
Ao andar pelo campo, ele tinha descoberto umas ervas que, comparadas à descrição textual e ao desenho de um livro sobre a fauna e a flora, pareciam nutritivas. Eram venenosas. Foram mortais. Ele agonizou sem meios de pedir ajuda, sem meios de compartilhar a descoberta do que é a felicidade.
Foi encontrado morto dentro de um veículo abandonado, as anotações foram lidas pela família, bem como uma fotografia foi vista.
Não ouso sequer criticar o rapaz. São escolhas, a vida é feita de escolhas. Eu mesma já escolhi destinos amargos.
Mas fico pensando que alguma doçura, tipo cuidado de mãe, tem que se estabelecer a determinada altura, para que o balanço seja positivo. É justamente nesse pé que eu própria ando, para comigo. "Calma, linda, você faz o que pode", "Relaxa, menina, você não vai corrigir tudo o que considera indevido, nem vai controlar em todos os aspectos a sua própria vida". Assim eu me conecto outra vez.
Uma viagem não precisa atingir um ponto final há muito programado. Com menos ansiedade, com mais humildade e sem a pretensão de reunir em si todo o conhecimento que o mundo parece cobrar de nós, a viagem termina onde ainda temos equilíbrio em cima das nossas pernas, para dar passos atrás e para fazer passos de dança, largando a bagagem no chão. Chão de qualquer deserto, chão plano ou o da montanha mais inclinada.
Lembrei de ter passado longos tempos com um provérbio árabe, a matutar: "Louco é o viajante que quer construir uma casa no caminho". Eu me perguntava o que era "uma casa no caminho".  Acho que é qualquer forma de imobilidade, de autolimitação.
E isso ele se obrigou a fazer, ao eleger o Alasca, ao eleger o esforço mais hercúleo como sinalizador, ao fazer dos pais os mais loucos.
Houve outros sinais, houve amigos sinceros e houve emoções agradáveis, mas ele quis sempre o desafio. A irmã, narradora da história, entendeu que o que ele disse precisava ser dito, era parte de um ensinamento caro.
Quero assinalar que um dos autores que nortearam a travessia desse rapaz foi Thoreau, que eu andei a ler igualmente.
É bonito, é inspirado, é contestador e exigente. Mas não precisa ser levado à risca, como se não ter regras (como ele apregoa) fosse a busca suprema. Como se os jardins estivessem sempre abaixo dos prados e das florestas. Jardins são cultivados para os fracos? Florestas são o destino dos fortes? São ideias legítimas, são opções a que precisamos dar o nosso respeito. Mas tidas em solidão, são quase como caminhos sem volta. O mundo habitado, penso eu, é o nosso mundo onde os ideais têm sem dúvida aplicação. Custa observar os loucos, custa ver-se impotente, custa dizer não, custa consentir, também. Mas esse não é o mundo dos mortos. É o mundo do perdão, da busca que não nos expõe à morte, necessariamente.
Para suavizar um texto tão tristonho, uma linha tão esticada para tocar de leve no que é a liberdade e no que é o idealismo levado a sério: as músicas do filme são fantásticas (são do Eddie Vedder), as interpretações dos atores, idem. Willian Hurt sentado como uma criança no meio da rua, uau! Um filme que dá um recado, sem dúvida que dá, sem fazer afirmações radicais, sem condenar nem carregar quem quer que seja num andor.
 
 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A vida secreta de Walter Mitty

Estava quase igual ao Walter Mitty visto de fora ou de longe.

Era sexta à noite e eu brigava com a impressão de ter pouca história pessoal para contar.

Saí de casa, então. Fui ao cinema e a impressão se transformou, como tinha de ser, pois nem eu havia perdido a capacidade de discernir sobre a minha própria trajetória, nem a personagem Walter Mitty era uma figurinha patética, como faziam crer seus colegas menos chegados, até determinada parte do filme.

Walter era pacato, sonhava demais e não se impunha, mas já havia feito muito pelo lugar onde trabalhava, pela qualidade na comunicação com o grande público, pelo trabalho de um artista em particular.

Ele fazia o tratamento das fotografias que a revista Life tinha de publicar e, por desempenhar bem essa função e também por andar a imaginar mil cenários com uma colega interessante, é que pôde se atrever em aventuras.

Para quem gosta de revistas e das formas que elas encontram para sobreviver às mudanças sociais, penso que há um filme à parte, começando pelas capas que são atribuídas à Life, e que no fundo são elas próprias, também, fruto de ficção.

Bom, os lugares que aparecem na tela/ecrã de cinema, na sequência da decisão da personagem de partir e descobrir, são estonteantes. E a forma como ele se locomove nesses lugares, idem. 

As músicas que o inspiram, começando por David Bowie, uau! "Ground control to Major Tom (...)/This is Major Tom to ground control/I'm stepping through the door/And I'm floating in the most peculiar way ".

Lugares e músicas resultam na seguinte sensação: você está lá, perto de um oásis, prestes a fazer contato, testemunhar que existe um mundo vasto, pontuado de pequenas coisas que não é preciso tocar. Foi este último recado que me fez estar de acordo com o ponto de vista do filme enquanto eu o via, porque suponho que o recado já estivesse em mim, pronto para ser repetido: chega uma hora em que não é urgente - nem muito menos obrigatório - fotografar uma cena muito bonita, por exemplo. Basta observá-la. Muita calma em nós, muito silêncio e, quando o momento mágico para o espírito passar, dá até para mudar completamente de rumo e jogar bola na areia, se quiser.

Para mim, há um prazer especial em que esse toque seja dado pela personagem do Sean Penn, a propósito de um felino que se esconde feito um fantasma, uma aparição. 


No mais, tem Ben Stiller na direção e como ator, embora numa postura bem diferente da que o faz famoso; tem um retrato de família muito amoroso, e as conhecidas caricaturas dos grupos (neste caso, somos convidados a rir dos superiores hierárquicos do protagonista, cheios de tiques, de estilo que é da moda e é mau, vazios de perguntas e de espaço para sonhar).

Fiquei com vontade de ler o texto que inspirou o filme. Será que o encontro? O site da Life tem qualquer coisa que nos aproxima do texto, que nos convida à pesquisa, pelo menos. http://life.time.com/culture/james-thurber-photos-of-the-man-who-invented-walter-mitty/?iid=lf%7Cmostpop#1