Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


sábado, 7 de junho de 2014

Parecem dois mundos completamente apartados, mas a importância dos filhos os une

Eu hoje estive a ler sobre Patrícia Galvão, a Pagu, mulher que o pintor Cândido Portinari pintou, dado o fascínio que ela exerceu nos artistas durante o Modernismo brasileiro.


Não é propriamente uma mulher desta nossa época, em que parecemos fantasmas e lutamos para mudar essa condição, enquanto ela se alastra, desgovernada.
Se contraponho a energia dela à minha época em particular, é porque Pagu fez de tudo um pouco ao longo da primeira metade do século passado e ainda encontrou disposição para confessar aos filhos, numa carta, o quão tumultuada se sentia
Não deve ter sido fácil agir no tempo dela, e ela parece ter agido incansavelmnte porque sentia que era o melhor a dar. Para se ter uma ideia das tarefas de que ela se incumbiu ou as que não pôde evitar: passou por mais de um aborto, escreveu panfletos de cunho político e os distribuiu, candidatou-se a deputada estadual, foi presa mais de vinte vezes, foi torturada, viajou pelo mundo, travando contato com Freud, Borges e estrelas de Hollywood, escreveu sobre teatro, poesia, televisão, mudou de partido político, fundou jornais e viu o encerramento controverso de alguns deles, tentou o suicídio, teve vários pseudônimos como escritora de ficção, desenhou  para a imprensa e fez HQ/BD etc. 
Já tendo conhecimento de parte da história de vida dela, admito que, depois de ler com calma alguns artigos científicos, fiquei emotiva.
A perturbação que ela parece ter sentido relativamente aos filhos é por mim compartilhada talvez em maior grau do que as outras, pelo menos neste momento da minha vida. Considero tão difícil obsevar um filho, tão delicado o equilíbrio entre os nossos medos e sonhos e os deles. Imagino que simplesmente não exista preocupação maior do que estar à altura de um filho. Pagu, que trabalhou arduamente, sentiu que devia explicações aos filhos; eu, que falo demais com o meu, seja pela tentativa de advertir, seja pela admiração que ele causa em mim, tenho algum receio de não ser capaz de reconstruir aquilo que julgo ser o mínimo que ele merece.
E o que um filho nosso merece? O melhor, o que nem precisa de definição, de adjetivação, pois certamente é divino, é a perfeição na terra. Olho para o meu filho e diante das possibilidades que nele por ora não estão consolidadas, pergunto-me se saberei agir bem, se saberei acompanhá-lo, eu que sinto em mim menos presença de espírito do que em Pagu.
Muito bem, imersa nesse nível de considerações que eu aqui expus de leve, não sei se para fugir ou para deixar respirar encontrei um filme na Tv paga - essa miscelânea que tanto pode oferecer qualidade quanto quantidade, sem constrangimentos de nenhum tipo.
Vi The shipping news, obra também ela acerca de filhos e de realização pessoal.


O filme tem quase quinze anos. Tem Julliane Moore (que a meu ver não precisa da silhueta elegante nem de quaisquer adereços para ser feminina), cuja personagem forma um par romântico credível com a personagem de Kevin Spacey. Ela faz e ele faz por isso, igualmente. São figuras que se assemelham na medida em que estão ambas sozinhas, depois de péssimos casamentos, e têm filhos pequenos "esquisitos"; diferem porque ela já encontrou aquilo em que é boa (está à frente de uma escola infantil num lugar remoto), ao passo que ele não teve autoestima suficiente para arriscar um bom desempenho num ofício qualquer; ela já saboreou a generosidade familiar depois de um trauma, ao contrário dele que está às voltas com a descoberta das suas origens.
Mais segura de si, ela ampara o filho. Menos confiante, ele também ampara a filha. Até que um cresce num aspecto, outro cresce noutro, e da convivência natural surgem o desejo e a cumplicidade, e saem todos a ganhar. Ela já é capaz de ter vida íntima outra vez, ele já é capaz de receber apoio, o filho dela tem finalmente uma amiguinha, a filha dele tem finalmente ouvintes. 
Por qual motivo o filme me manteve desperta até o fim? Por que o associei à vida de Pagu?
Nâo apreciei a forma como a narrativa foi rematada na versão para o cinema. Parece que a sensibilidade, as variadas buscas pessoais, todas as muitas tarefas difícies enfrentadas por um e por outro foram esvaziadas, quando a personagem de Kevin Spacey se mostrou mais leve, no estilo "eu nunca imaginei que um homem com o coração destroçado pudesse recomeçar, e essa é a lenda de um recomeço possível"... O filme é o resultado da adaptação de um romance premiado e há sempre quem penalize as tentativas de mudar a linguagem de uma obra de valor reconhecido. Contudo eu não li o romance, por isso não fiquei incomodada com o filme nesse sentido. Foi a voz que sublinha a vitória da personagem que me desagradou,o tom dessa voz, como se ela retirasse a verdade que com um determinado ritmo o filme construiu. Foi como se essa forma de encerrar o filme desvalorizasse as cenas anteriores, o esforço anterior.
Patrícia Galvão, a Pagu, foi muitíssimo mais eloquente como narradora da sua própria vida. Mas ela não foi personagem, foi agente. As personagens, no filme, estiveram quiçá à altura de uma composição, do que uma escritora e um cineasta/realizador conceberam para elas. Nunca é a mesma coisa. 
Com boa vontade e com coração aberto, medidas as diferenças de alcance, apetece-me dizer que os filhos são caros, não são troféus, não são ideias, são o que de mais real pode existir e a suspeita de não ter como oferecer a eles um entorno saudável é de amargar, enquanto não superamos o nosso trauma pessoal. Terei a capacidade de garantir-lhe um lar bonito, como a personagem de Julianne Moore garantiu? Terei a lucidez de me ver como sou, como Pagu se viu, a fim de me corrigir e ser o melhor para ele? Terei uma mão segura para segurar a mãozinha dele, como custou à personagem de Kevin Spacey ter? Terei palavras para me desculpar pelas opções confusas, palavras que não precedam o erro, como estas de hoje?  
As perguntas são tão grandes, homens e mulheres precisam ser tão fortes, que se leva às vezes um filme inteiro a formular perguntas e a responder perguntas - ou uma vida inteira, que depois a gente espreme numa carta emotiva, se tiver o dom da palavra.