Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Adeus Tristeza

A HQ/BD Adeus Tristeza, de Belle Yang, conta as idas e vindas da família do pai dela, entre Taiwan, China e Estados Unidos da América. A edição que conheço é da Companhia das Letras e foi publicada em 2012. O original é pouco mais antigo do que isso, data de 2010. Eu li a HQ em novembro ou dezembro do ano de 2013, reli agora, passado um ano.

Agrada-me mostrar, em algumas linhas, o modo como a autora assume o comando da narrativa, mostrando assim como uma autobiografia pode recompor elos importantes com o núcleo familiar. Não sei se em toda e qualquer autobiografia existe esse compromisso de antemão, isto é, não sei se ele existe por definição, mas para mim é um dos elementos que se pode ver com carinho no livro em questão.

O anúncio das intenções da narradora é feito da seguinte forma: "Você pode me contar mais da nossa família na Manchúria, Baba?” (p.13).

Prosseguindo nessa linha, ela afirma: “Eu amo as histórias de baba. Eu quero poder dar voz às pessoas que foram esquecidas. Ovo Podre me calava com os punhos quando eu discordava. O governo chinês cala seus cidadãos com tanques. Eu tenho voz na América.  Não vou jogar isso fora” (p.35).

E confessa-se, mais de uma vez: "Sinto muito que vocês tiveram que sofrer por mim" (p.66); “É, eu fui mimada” (p.182).

Questiona o pai, narrador da maior parte dos acontecimentos, “Baba, você teria saído de casa se soubesse que a viagem seria tá difícil?” (p.186).

E eles avançam na reflexão proposta por ela: “Teria deixado a Manchúria se soubesse que minha jornada seria tão difícil? Não, certamente que não!”. “Baba, e se você soubesse que teria uma bela família, e que acabaria na América, vivendo tranquilamente perto do mar?”. “Aí a resposta é SIM!”. (p.188).

Quem vai acompanhando o modo como ela e a mãe ouvem esse pai, sabe que é coerente que ela reconheça: “Não é tarde demais para eu conhecer meu pai” (p.195); “Eu nasci em Taiwan enquanto as pessoas no continente passavam fome” (p.226)


Ir buscar a história dos seus ancestrais não é ir longe demais, é ir até o lugar em que um tipo de verdade está, se a relação com o pai e consigo mesma ajuda a "apagar a tristeza da vida de Baba” (p.242)




terça-feira, 18 de novembro de 2014

Outra Patrícia Galvão, já que nela houve muitas














CANAL


Nada mais sou que um canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal
Sabem vocês o que é ser um canal?
Apenas um canal?


Evidentemente um canal tem as suas nervuras
As suas nebulosidades
As suas algas
Nereidazinhas verdes, às vezes amarelas
Mas por favor
Não pensem que estou pretendendo falar
Em bandeiras
Isso não


Gosto de bandeiras alastradas ao vento
Bandeiras de navio
As ruas são as mesmas.
O asfalto com os mesmos buracos,
Os inferninhos acesos,
O que está acontecendo?
É verdade que está ventando noroeste,
Há garotos nos bares
Há, não sei mais o que há.
Digamos que seja a lua nova
Que seja esta plantinha voacejando na minha frente.
Lembranças dos meus amigos que morreram
Lembranças de todas as coisas ocorridas
Há coisas no ar…
Digamos que seja a lua nova
Iluminando o canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças

Sou um canal.


O poema é de 1960. 

Apareceu em "A Tribuna", jornal da cidade de Santos.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Alguma poesia de Patrícia Galvão

NATUREZA MORTA


Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, bein? a ave na parede
96Mas conservaram os meus olhos
O verdade que eles estão parados.
Como os meus dedos, na mesma frase.
As letras que eu poderia escrever
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!
Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo,
Os namorados passando, passeando,
Os ventres estourando
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!
Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!
Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Si eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém...

Nem a presença dos corvos.



Da apaixonada, incansável e inquieta Patrícia Galvão, que Raul Bopp um dia chamou "Pagu".
Escrito em 1948, esse poema apareceu também na biografia organizada por Augusto de Campos, em 1987. É o texto da página 168.

sábado, 15 de novembro de 2014

Mari, a minha filha única, até o momento



Eu hoje tive um livro lançado entre amigos (http://loja.atitudeterra.com.br/pd-16da3b-mari-pre-venda.html?ct=5764e&p=1&s=1).
Um livro feito também ele com uma amiga. Mari, o livro, Filomena, a amiga. Muito prazer.
Foram bons pra comigo os amigos de lá!

Por causa de todo o processo eu me vi com umas lentes um pouco mais fortes do que é habitual em mim usar: foram captadas imagens para o vídeo apresentado na sessão de lançamento e eu me descobri calma ao gravar; foi feita a divulgação e eu tive receio de estar pressionando os convidados (hehe), mas tentei falar assim mesmo com quem eu me lembrava de falar, pois queria ver essas pessoas online.


Eu não fui à festa. Como também não tive festa de formatura, nem lá nem cá... Paciência.


Os dias têm sido longos, frios e exigentes.

Os projetos, altos e ao mesmo tempo bonitos.
Voltei a corrigir textos extensos para outras pessoas, voltei a escrever os meus textos, parados até que Mari saísse do forno. Voltei a pesquisar e a me apresentar em público.  Mesmo tendo sido quase um fiasco, eu estive a olhar para o público que me via titubear.

Não é à toa que o blog foi posto para dormir um pouquinho.

Voltas e mais voltas, eis-me aqui e, como diz meu lindo sempre lindo Gonzaguinha:

"É viver e aprender
Vá viver e entender, malandro
Vai compreender
Vá tratar de viver

(...)
Se é pra ir vamos juntos
Se não é já não tô nem aqui"