Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Into the wild

There is pleasure in the pathless woods,
There is rapture on the lonely shore,
There is society where none intrudes,
By the deep sea and the music in its roar;
 
I love not man the less, but Nature more.
 
Lord Byron
1º semestre do ano de 1990.
Começa uma travessia de muita reflexão e de conclusões ou cegas ou mal iluminadas, ou desesperadas ou as possíveis para um jovem cheio de variadas capacidades e muitas feridas!
Alexander Super-Tramp, às vezes simplesmente Alex. Nomes que ele se deu, partes da identidade que ele viveu para contar uma história a que tinha direito.
Ele era um recém-licenciado que saiu de carro do lugar onde estudava, para chegar ao Alasca, sua terra prometida.
Ele não tirava da cabeça o que vivera na casa dos pais; ele colocava insistentemente na cabeça o que encontrava nos livros, bons livros por sinal. De todo modo, apenas livros...
Mochila nas costas, ele passou a viajar a pé a partir de um certo ponto, experimentou caçar e experimentou pôr-se num caiaque para descer um rio a que não estava habituado. Caiu noutro rio, de correnteza forte e teve medo de ser levado pela força das águas.
Sentiu um frio extremo, teve fome, subiu em vagões sem pagar pela viagem, desceu deles sem avisar.
Expôs-se ao risco, enfim.  Porque estava escrito que o homem tem que arriscar e tem que ir ao mundo selvagem, a fim de dar o seu recado a um mundo hipócrita.
O que ficamos a saber enquanto vemos o filme Into the wild, que recompõe essa travessia verdadeira, provavelmente não esteve bem formatado aos olhos do seu protagonista real, Christopher Johnson McCandless. Pois ele estava a aumentar a distância entre os pais e ele - pais que se agrediam física e psicologicamente, pais que exigiam demais dele e da irmã dele -, sem terminar de entender que, no caminho, outras figuras mostraram de bom grado o quão difícil é ser pai e mãe, o quão difícil é perder um filho que não deixou pistas, o quão difícil é perdoar e levar uma vida de carne e osso, para além da sabedoria que nos chega pelos livros, e que deve chegar, digo eu de propósito, mas não para varrer nossos elos com o mundo que temos.
Ele ouviu conselhos, ele chorou com os amigos novos e com eles riu, também. Sempre foi escrevendo nos seus papéis o que pensava da vida, o que aprendia na prática e com a leitura, até a máxima que assusta o espectador do filme, tão dura e tão má de contrariar que ela é: a felicidade só é real quando é compartilhada. No momento em que ele descobre isso, está a morrer, e a luz se faz para ele. O filme de Sean Penn dá a esse clarão a luz do sol, mesmo, vista da janela de um moribundo a verter lágrimas e a se pôr direito para o fim.
2º semestre do ano de 1992.
Ao andar pelo campo, ele tinha descoberto umas ervas que, comparadas à descrição textual e ao desenho de um livro sobre a fauna e a flora, pareciam nutritivas. Eram venenosas. Foram mortais. Ele agonizou sem meios de pedir ajuda, sem meios de compartilhar a descoberta do que é a felicidade.
Foi encontrado morto dentro de um veículo abandonado, as anotações foram lidas pela família, bem como uma fotografia foi vista.
Não ouso sequer criticar o rapaz. São escolhas, a vida é feita de escolhas. Eu mesma já escolhi destinos amargos.
Mas fico pensando que alguma doçura, tipo cuidado de mãe, tem que se estabelecer a determinada altura, para que o balanço seja positivo. É justamente nesse pé que eu própria ando, para comigo. "Calma, linda, você faz o que pode", "Relaxa, menina, você não vai corrigir tudo o que considera indevido, nem vai controlar em todos os aspectos a sua própria vida". Assim eu me conecto outra vez.
Uma viagem não precisa atingir um ponto final há muito programado. Com menos ansiedade, com mais humildade e sem a pretensão de reunir em si todo o conhecimento que o mundo parece cobrar de nós, a viagem termina onde ainda temos equilíbrio em cima das nossas pernas, para dar passos atrás e para fazer passos de dança, largando a bagagem no chão. Chão de qualquer deserto, chão plano ou o da montanha mais inclinada.
Lembrei de ter passado longos tempos com um provérbio árabe, a matutar: "Louco é o viajante que quer construir uma casa no caminho". Eu me perguntava o que era "uma casa no caminho".  Acho que é qualquer forma de imobilidade, de autolimitação.
E isso ele se obrigou a fazer, ao eleger o Alasca, ao eleger o esforço mais hercúleo como sinalizador, ao fazer dos pais os mais loucos.
Houve outros sinais, houve amigos sinceros e houve emoções agradáveis, mas ele quis sempre o desafio. A irmã, narradora da história, entendeu que o que ele disse precisava ser dito, era parte de um ensinamento caro.
Quero assinalar que um dos autores que nortearam a travessia desse rapaz foi Thoreau, que eu andei a ler igualmente.
É bonito, é inspirado, é contestador e exigente. Mas não precisa ser levado à risca, como se não ter regras (como ele apregoa) fosse a busca suprema. Como se os jardins estivessem sempre abaixo dos prados e das florestas. Jardins são cultivados para os fracos? Florestas são o destino dos fortes? São ideias legítimas, são opções a que precisamos dar o nosso respeito. Mas tidas em solidão, são quase como caminhos sem volta. O mundo habitado, penso eu, é o nosso mundo onde os ideais têm sem dúvida aplicação. Custa observar os loucos, custa ver-se impotente, custa dizer não, custa consentir, também. Mas esse não é o mundo dos mortos. É o mundo do perdão, da busca que não nos expõe à morte, necessariamente.
Para suavizar um texto tão tristonho, uma linha tão esticada para tocar de leve no que é a liberdade e no que é o idealismo levado a sério: as músicas do filme são fantásticas (são do Eddie Vedder), as interpretações dos atores, idem. Willian Hurt sentado como uma criança no meio da rua, uau! Um filme que dá um recado, sem dúvida que dá, sem fazer afirmações radicais, sem condenar nem carregar quem quer que seja num andor.