Pondera, Pandora, como se isto fosse um diário

Pondera, Pandora, como se trabalhasse para rever-se, inteira, neste diário

Um ou dois aforismos
Não sei explicar o motivo, mas sempre ouvi com um misto de curiosidade e desconfiança as pessoas que gostam de dar opinão introduzida mais ou menos assim: "como diz o poeta" ou "e como disse o outro". Apesar disso, coleciono alguns aforismos, cujos autores eu prefiro indicar a deixar no ar.

Teixeira de Pascoaes, por exemplo, tinha uns fantásticos: "Amar é dar à luz o amor, personagem transcendente"; "Só os olhos das árvores vêem a esperança que passa"; "Existir não é pensar; é ser lembrado"; "A indiferença que cerca o homem demonstra a sua qualidade de estrangeiro"; "Vivemos como num estado de transmigração para a nossa fotografia".

Ele viveu em Amarante! Pena que não se respire o mesmo ar nos dias de hoje...

O aforismo dele de que eu mais gosto, no entanto, entre os que saíram publicados pela Assírio & Alvim, traz o seguinte:

"A seara não pertence a quem a semeia, pertence ao bicho que a rouba e come".

Sendo homem da terra, do chão, dos cheiros da natureza, muito embora culto, eu só posso concordar. Para um espírito muito suave - a não ser quando sente-se desafiado -, esse tipo de sabedoria condensada é sem dúvida ensinamento.


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Avós

A lua e o sol, nesta ordem, e depois o sol e a lua, para finalizar.
Tudo se vê uma vez e depois outra, com olhos mais abertos, no livro de Chema Heras e Rosa Osuna, Avós.
O casal que conversa à frente do leitor tem um próposito - falar de um baile - e toda nova informação que um dá, o outro traduz, por assim dizer, tornando-a mais doce, mais apurada.
Pequenas pausas são vistas apenas no início e no final da narrativa, uma delas quando o avô ouve a avó dizer que já não é uma "menina, para andar de festa em festa" e olha para o sol, antes de colher uma margarida e oferecê-la à mulher.
A partir daí, se a avó se define como "uma galinha sem penas", o avô protesta, corrigindo: "Não digas isso, mulher! Tu és bonita como o sol!"
Ela no entanto continua a manifestar desgosto com a sua própria imagem, reprova os olhos que tem, os cílios/pestanas, a pele, os lábios, o cabelo, as pernas mas, por fim, põe todos os artifícios de lado (lápis, pincel, creme hidratante, baton, tinta, saia), lava o rosto e sorri para o avô.
A lista do avô também cresceu: os olhos dela não eram "tristes como uma noite sem lua", eram "tristes como as estrelas da noite"; os cílios não eram curtos como "as patas de uma mosca", eram antes curtos como "erva recém cortada"; a pele não era "enrugada como figo seco", era enrugada, sim, porém como "as nozes de uma tarte"...
Tudo conforme a idade. Tudo bonito, mesmo assim, ou até por isso mesmo. Bonito e natural.
E depois que a avó se deixou convencer da sua beleza, eles puderam dar os braços e caminhar até o baile onde ela, sábia, olhou o avô também, fazendo ela própria a sua pausa, a segunda pausa do livro. O que descobriu durante a recaptulação das qualidades que o companheiro enumerava enquanto a olhava?
Só podia ser beleza. Então ele ganhou igualmente uma margarida e os dois puderam dançar no baile.
Da minha parte, um pequeno pequeníssimo desejo: fiquei encantada com a ilustração que mostra o casal idoso e o seu entorno, a visão dolorosa e a visão generosa, as plantas, os animais e o céu, as cores mais apagadas realçadas aqui e ali pelo amarelo do sol, mas quando li para o meu filho o trecho em que a avó colhe a margarida, pensei que a florzinha iria parar atrás da orelha do avô... Não, ela foi posta pela avó no casaco do avô, ok. A avó não a amassou, pois se aconchegou do outro lado do peito dele, de acordo com a Rosa Osuna, ilustradora... tudo bem, então. Mas acho que um avô, um homem tão terno merecia uma flor simetricamente disposta como a da sua mulher, a avó, pois eles são um para o outro um espelho maravilhoso, que o meu elogio neste post é insuficiente para mostrar.